COTAS, UM PAÍS DIVIDIDO

Após entrar, a luta para se manter na universidade

O fantasma dos cotistas é o desamparo. Para estudantes pobres, o maior problema é se manter estudando. Mesmo que as universidades federais sejam gratuitas, os gastos na graduação são um obstáculo que, sem a ajuda governamental, pode se tornar intransponível. É o que você vê na última reportagem da série do Jornal do Commercio sobre as cotas nas universidades federais

Wagner Sarmento
Cadastrado por
Wagner Sarmento
Publicado em 28/08/2012 às 6:59
Estudante Luciana Maria da Silva (D) com a mãe Luziana. Apoio da família é fundamental para ela conseguir permanecer na universidade
O fantasma dos cotistas é o desamparo. Para estudantes pobres, o maior problema é se manter estudando. Mesmo que as universidades federais sejam gratuitas, os gastos na graduação são um obstáculo que, sem a ajuda governamental, pode se tornar intransponível. É o que você vê na última reportagem da série do Jornal do Commercio sobre as cotas nas universidades federais - FOTO: Estudante Luciana Maria da Silva (D) com a mãe Luziana. Apoio da família é fundamental para ela conseguir permanecer na universidade
Leitura:

Engana-se quem pensa que a luta de um aluno proveniente de escola pública acaba quando ele consegue, enfim, uma vaga na universidade. Após a aprovação no vestibular, começa outra árdua batalha. O maior problema de estudantes cotistas não está no aprendizado, mas na dificuldade de se manter na faculdade. Os gastos com livros, xerox, passagem, alimentação e eventos são uma pedra no sapato, sobretudo diante do quadro que se avizinha: dos 50% das vagas reservadas a egressos da rede pública, metade será para alunos cuja família tem renda per capita de até 1,5 salário mínimo.



Luciana Maria da Silva, 27 anos, sabe bem disso. Foi nó cego adquirir o status de universitária, mas ela conseguiu. Estudava na Escola Barros Carvalho, no Cordeiro, Zona Oeste do Recife, e passou em serviço social na Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Está na metade do curso e estudar tem sido tarefa árdua, apesar de a faculdade ser gratuita. Luciana mora no Janga, em Paulista, e pega de quatro a seis ônibus todo santo dia. Só de passagem gasta cerca de R$ 150 por mês. Isso para não falar nos custos em alimentação, xerox e congressos. “É complicado. No começo, foi muito difícil. Já cheguei a pensar em desistir, mas não vou. A universidade é pública, mas tudo dentro dela é privado. Você gasta com tudo. O principal desafio para quem vem de origem popular, com certeza, é se manter dentro do curso”, conta.

A jovem é filha de um PM aposentado com uma diarista. Pais que não deixam Luciana lutar sozinha. “A gente sabe que, na maioria dos casos, filho de pobre, antes de estudar, tem que trabalhar. Mas lá em casa não tem covarde. A gente sempre fez de tudo para ela não precisar abandonar os estudos. Se aparece uma faxina, eu faço. Se aparece alguma coisa na área de cozinha, eu faço. Mas ela só sai da UFPE com o canudo debaixo do braço”, frisou Luziana Maria da Silva, 46, mãe de Luciana. O que alivia a situação são os R$ 400 mensais que Luciana recebe por participar do Programa de Educação Tutorial Conexões de Saberes. “Essa bolsa mudou minha vida. O dinheiro ainda é pouco, mas dá para o gasto. Agora estou decidida a ir até o fim”, ressalta.

Karla Roberta Oliveira, 24, no sexto período de pedagogia na UFPE, também é bolsista e acredita que, sem o benefício, poderia ter enveredado pelo caminho da evasão escolar, irremediável destino de alunos da rede pública que não recebem incentivo quando ingressam na universidade. “Para o estudante pobre, a bolsa influencia de maneira decisiva na hora de pensar em desistir”, conta. Segundo ela, são R$ 50 por mês só de xerox. No quesito alimentação, Karla gasta R$ 3 por almoço, uma vez que é bolsista parcial no restaurante universitário (RU).

Natércia França, 29, vive as mesmas dificuldades e os mesmos dilemas. É uma das melhores alunas do quarto período de serviço social da UFPE, não reprovou nenhuma disciplina e vê que o rendimento está longe de ser o maior bicho-papão do cotista. Problema mesmo, segundo ela, é o fantasma da desistência. Mesmo assim, Natércia diz que renunciar é verbo que ela não pretende conjugar. “Só passei no vestibular na quinta vez que tentei. Quero ser pesquisadora e não vou desistir”, garante.

No caso de Sergiane Rafaela de Oliveira, 25, ainda há um agravante: ela é de Limoeiro, no Agreste. Além de ser de origem pobre e precisar da bolsa para continuar estudando, enfrenta o problema da distância de casa e da família. Como o orçamento é apertado, Sergiane só consegue visitar os parentes uma ou duas vezes por mês. Deixa a saudade bem perto da obstinação e caminha rumo ao sonho do diploma. “É difícil, mas não é impossível. A gente tem vontade. Só precisa de apoio.”Cristiane Galindo Gonzaga, 34, precisou adiar o desejo de fazer universidade ao realizar um outro sonho: ser mãe. Teve filho cedo e precisou trabalhar para sustentá-lo, porque o dinheiro do marido, segurança, não pagava todas as despesas. O garoto hoje tem 11 anos e Cristiane voltou à sala de aula. Mesmo meio enferrujada e ainda tendo que trabalhar, conseguiu reatar uma vontade antiga: foi aprovada em pedagogia no câmpus de Garanhuns da Universidade Federal Rural de Pernambuco (UFRPE), graças ao bônus de 10% para egressos da rede pública.

De baixa renda e com quatro anos de curso pela frente, ela espera ter o apoio necessário para não precisar virar mais uma nas estatísticas de evasão escolar. “Sou mãe, esposa, trabalhadora e dona de casa. Sei que terei obstáculos e quero ver se consigo continuar no trabalho, para poder conciliar e ter condições de arcar com as despesas do curso”, diz Cristiane, que é recepcionista e ganha salário mínimo.

Relatório divulgado pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj) reforçou que a maior dificuldade dos cotistas não está na defasagem do ensino público, mas na evasão escolar. A Uerj, por isso, mantém desde 2004, paralelamente às cotas de 45% para estudantes vindos da rede pública, o Programa de Iniciação Acadêmica (Proiniciar), estratégia para manter o aluno de baixa renda. O projeto oferece bolsa de R$ 300 e distribui livros didáticos.

ESTUDO - O estudante do sétimo período de ciências contábeis Márcio Nunes, 21, elaborou no ano passado um artigo no qual analisou as principais causas da evasão escolar em seu curso entre os anos de 1999 e 2008. De acordo com a pesquisa, 91% dos que desistiram trabalhavam e não conseguiram conciliar estudo e emprego. “A maioria acaba optando pelo trabalho, já que sem sustento não dá para estudar”, diz.

Nunes, que é cotista, saiu de Timbaúba, na Mata Norte, para representar a UFPE e apresentar seu trabalho num congresso na cidade do Porto, em Portugal. É a história da cota que deu certo.

Últimas notícias