DAMA DE FERRO

Thatcher mais atual do que nunca

Não só o filme trouxe à tona o mito da ex-premiê britânica. Crise na Europa sugere que seu euroceticismo podia estar certo

Wagner Sarmento
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Wagner Sarmento
Publicado em 03/03/2012 às 14:29
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Não só o filme trouxe à tona o mito da ex-premiê britânica. Crise na Europa sugere que seu euroceticismo podia estar certo - FOTO: Foto: Arquivo AFP
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Não foi apenas o filme A Dama de Ferro que desenferrujou Margaret Thatcher. A crise na zona do euro recoloca suas ideias e políticas na ordem do dia. Aos 86 anos e 12 após renunciar ao posto de primeira-ministra do Reino Unido, cargo que ocupou por três mandatos, Thatcher parece mais atual do que nunca, pela interpretação que rendeu a Meryl Streep o Oscar de melhor atriz e por um quê de premonição no “euroceticismo” da ex-premiê.

Ontem, hoje e sempre, o tema Thatcher é 8 ou 80. Personagem central da Guerra Fria, mãe do neoliberalismo, inimiga ferrenha do comunismo, ela é destas figuras históricas que não permitem meio termo: ou você ama, ou odeia.

Margaret Hilda Roberts nasceu em Grantham, Lincolnshire, um condado inglês com economia baseada na agricultura e na pesca. Filha de mãe costureira e pai dono de dois armazéns, pregador metodista e com pequenas incursões pela política, a jovem Margaret estudou em escola pública e chegou a se formar em química na Universidade de Oxford, em 1947.

Casou-se com Denis Thatcher, executivo da indústria petrolífera, em 1951, a quem conheceu num jantar do Partido Conservador. Dois anos depois, passou a estudar direito tributário e logo se tornou admiradora do economista Friedrich Hayek e sua ideologia de livre mercado. A vida política começou em 1959, ano em que foi eleita para a Câmara dos Comuns.

Quando era ministra da Educação, em 1973, Thatcher chegou a dizer que não viveria para ver uma mulher no poder. Estava enganada. Seis anos depois, em 1979, o então premiê trabalhista James Callaghan deixou o governo após a dissolução do Parlamento ser aprovada por 311 votos a 310. A líder do Partido Conservador, Margaret Thatcher, tornava-se a primeira mulher eleita chefe de Estado no mundo ocidental.

Thatcher assumiu uma nação economicamente esgotada após anos de louros decorrentes da vitória na Segunda Guerra Mundial (1939-1945), num cenário de alta inflação, desemprego e chuva de greves. Enquanto outros países europeus experimentavam o “milagre econômico”, a Inglaterra era o “homem doente” do Velho Mundo.
Margaret Thatcher revigorou a economia britânica. Em seus 11 anos de governo, privatizou empresas públicas e diminuiu impostos. Reduziu a inflação, melhorou a cotação da libra esterlina e foi implacável com os sindicatos.

Antes dela, o país contabilizava 29,5 milhões de jornadas de trabalho perdidas anualmente devido a greves. O número caiu para 1,9 milhão com Thatcher. Firme e de uma elegância eloquente, foi a precursora do neoliberalismo. Nas palavras do ex-presidente francês François Mitterrand, ela tinha “os olhos de Calígula e os lábios de Marilyn Monroe”.

“Thatcher foi o segundo nome mais importante da política do Reino Unido no século 20, depois de Winston Churchill. Herdou um país economicamente em decadência e reverteu a situação ao quebrar o longo consenso que existia entre trabalhistas e conservadores, desde o final da Segunda Guerra, de tentar uma conciliação entre o mercado e o Estado que não resolvia nenhum dos problemas do país”, observa o escritor, historiador e cientista político português João Pereira Coutinho, professor da Universidade Católica Portuguesa e comentarista do Correio da Manhã, de Portugal.

GUERRA FRIA - Ao lado do então presidente americano, Ronald Reagan (1981-1989), ela emplacou uma diplomacia anticomunista agressiva em pleno auge da Guerra Fria. Uma oposição que fazia questão expressar nos mínimos detalhes: não vestia vermelho e só era fotografada do lado direito.

Por essas e outras, recebeu dos soviéticos o apelido de Dama de Ferro. Na estátua em homenagem ao 40º mandatário dos EUA, inaugurada no ano passado no Centro de Londres, o pedestal abriga uma frase de Thatcher: “Ronald Reagan ganhou a Guerra Fria sem disparar um tiro”. Carne e unha, ela chegou a se referir a Reagan como “o segundo homem mais importante de minha vida”, após seu marido.

A Era Thatcher, contudo, também foi marcada por (muitos) problemas. O êxito econômico veio e, na esteira, altos custos sociais. A produção industrial caiu, empresas e bancos quebraram e o desemprego triplicou, indo a 3 milhões. A desigualdade social se acentuou: a renda dos mais ricos cresceu cinco vezes mais que a dos mais pobres. A pobreza duplicou e, em 1990, ano de sua renúncia, 28% das crianças britânicas estavam em condição de miséria.

“Margaret Thatcher tocou um plano drástico de natureza neoliberal, com reforma institucional e um forte ranço anticomunista. Ela retirou o Estado da economia e deixou o mercado livre para decidir sobre a vida das pessoas. Mas, na hora em que o mercado passa a funcionar de maneira solta, aparecem os problemas sociais. O Estado existe para tentar corrigir desigualdades e, sem ele, o processo de concentração de riqueza e renda se acentua.

Foi o que ocorreu”, explica Aécio Oliveira, professor de economia da Universidade Federal do Ceará (UFC). Já pressionada por medidas impopulares e após uma reeleição, em 1987, por uma pequena margem de votos, Thatcher se enfraqueceu ainda mais ao recusar a ideia de uma União Europeia (UE), bloco que seria formalmente criado em 1993.

Ao criar Poll Tax, imposto regressivo que custearia os governos locais mediante uma taxa única, o que faria as famílias de renda mais baixa pagarem proporcionalmente mais, Thatcher sofreu uma campanha popular mais implacável que ela própria. Perdeu apoio dentro do partido e se viu obrigada a renunciar ao cargo.

A crise econômica europeia atual é encarada por alguns analistas como uma pedra cantada por Thatcher. Mas ela não era voz única contra o ingresso britânico na zona do euro. Há dois meses, o premiê David Cameron, conservador, vetou o tratado da UE para reforçar a disciplina fiscal e financeira do bloco, gesto aprovado por 57% dos britânicos, conforme pesquisa do jornal Times. O britânico é, em essência, contra a participação do país no bloco. “O Reino Unido já foi o grande império do mundo, antes de perder o posto para os EUA. Os britânicos não querem entrar nessa porque se pensam grandiosos. Mas será que eles estão imunes à crise só por não estarem na zona do euro?”, indaga Aécio Oliveira.

Para o economista, esta crise sepulta muito do que Thatcher pregou. “O que acontece hoje é o oposto do que Thatcher propôs. Vemos um retorno da política keynesiana, do Estado como fundamental para o controle da economia, com aumento de impostos e redução de gastos”, pontua Oliveira. Os líderes europeus clamam mais regras para o setor financeiro, na contramão do livre-mercado.

Coutinho, por sua vez, não acha que os pensamentos da Dama de Ferro se oxidaram. “Thatcher não era antieuropeia, ela pretendia a existência de uma comunidade econômica de nações livres. Thatcher opôs-se à criação do euro porque via no gesto uma ameaça à soberania dos Estados. Estava correta com vários anos de antecedência: a crise que a Europa vive hoje é uma crise do euro, ou seja, da existência de uma moeda comum, fortíssima, que serve realidades econômicas muito distintas”, pondera.

Se Margaret Thatcher seria capaz de pôr fim à crise, o analista português não sabe. Mas tem quase certeza de que ela apostaria no “desmantelamento da moeda única”.

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