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A política em ebulição, no Brasil e no mundo

As instituições da democracia liberal parecem prestes a ser dissolvidas como na frase de Marx e Engels que Marshall Berman tomou para título do seu livro “Tudo que é sólido desmancha no ar”

ANTONIO LAVAREDA
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ANTONIO LAVAREDA
Publicado em 03/04/2019 às 0:33
Foto: Diego Nigro/JC Imagem
As instituições da democracia liberal parecem prestes a ser dissolvidas como na frase de Marx e Engels que Marshall Berman tomou para título do seu livro “Tudo que é sólido desmancha no ar” - FOTO: Foto: Diego Nigro/JC Imagem
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No Brasil e em boa parte do mundo ocidental, a política está em ebulição. As instituições da democracia liberal parecem prestes a serem dissolvidas como na frase de Marx e Engels que Marshall Berman (1982) tomou para título do seu livro mais famoso: “Tudo que é sólido desmancha no ar”. O regime cuja arquitetura foi iniciada no século 18 e teve sua engenharia consolidada no século 20 ameaça não resistir ao século 21, marcado pela globalização, vertiginosidade da informação nas redes sociais e expansão acelerada e tentacular da inteligência artificial.

O ritmo do processo de deliberação dos poderes Legislativo e Judiciário é percebido como insuportavelmente lento. E como tal eivado de suspeição aos olhos do cidadão conectado que, consciente ou inconscientemente, exige das agências oficiais a mesma interatividade acompanhada da brevidade resolutiva que as empresas do mercado lhe asseguram.

Nesse contexto, a primeira vítima é o conceito de livre representação dos legisladores, sintetizado no célebre discurso de Burke aos eleitores de Bristol: “Vocês escolhem de fato um membro; mas quando acabam de fazê-lo ele não é mais um membro de Bristol e sim um membro do Parlamento” (Burke:1790).

Parlamento, Judiciário e a própria ideia geral de democracia podem ser feridos de morte por algoritmos de Big Data


As redes, ao contrário, impõem o mandato imperativo. A representação é vista quase como deformação, praticamente como em Rousseau (1762) enaltecendo Roma e Esparta. Aos congressistas sendo facultado obedecê-las ou sucumbir à guilhotina eleitoral.
A segunda é a redução do grau de liberdade das altas cortes do Judiciário. No passado é verdade que elas já eram submetidas à influência da opinião pública. Mas o papel dessa última era o de uma fragrância mais ou menos forte que impregnava sentenças definidas sobretudo pela interpretação das leis. Agora, os tribunais e seus membros são submetidos a paixões excitadas online que frequentemente extrapolam para o mundo off-line, expondo os juízes a incessantes tensões e constrangimentos.

A fragilização desses dois poderes abre espaço para a hipertrofia do Executivo, dessa forma presa fácil dos populismos. Que tendem a estabelecer uma relação dialogal direta com o cibercidadão. Ora promovem disputas diversionistas inconsequentes porém de boa octanagem emocional, numa espécie de “polítical gamefication” que ajuda a esvaziar polêmicas substantivas; ora são capazes, por não terem barreiras deliberativas, de dar respostas rápidas a um grande número de pequenas questões. Ambos expedientes tornam o César desses tempos socialmente encantador por sua velocidade, contrastada à lentidão paquidérmica identificada nas outras esferas.

Uma terceira vítima poderá vir a ser a própria ideia geral de democracia, ferida de morte por algoritmos de Big Data. A tecnologia em disjuntiva com a liberdade (Foer: 2017) abrindo espaço para a Inteligência Artificial criar uma Ditadura Digital (Harari: 2018). Porém, se assistimos a sinais claros dos processos aludidos, sabemos que as opções políticas para ganharem escala sempre precisaram ocupar previamente um espaço relevante nos corações e mentes. Afinal, Hitler ganhou eleições antes de liquidá-las (Levitsky & Ziblatt: 2018). Até mesmo os golpes demandam apoio social. Será que nessa dimensão o futuro da política democrática está comprometido de antemão?

Um levantamento em 38 países trouxe uma nota tranquilizadora. Mostrou um amplo suporte global para a “democracia representativa”, apontada por 78% como uma boa forma de governança. Com ela veio a constatação de que coerentemente 73% rejeitaram “governos militares” e 71% disseram não a “líderes fortes”, ou seja, ditadores.

Mas a pesquisa também trouxe preocupação e ansiedade. O sinal de alerta se acendeu quando foram apresentadas as opções “governo de especialistas” e “democracia direta”. A primeira dividiu as opiniões com 49% de adesão, enquanto a segunda obteve nada menos que dois terços, impressionantes 66% de aprovação. Ao que parece o que Bobbio (1979) chamou de “fetiche” da esquerda volta nesse século com força redobrada e transversal, uma utopia que passa a galvanizar também a direita, cujo entusiasmo corre acelerado nas redes sociais.

* Antonio Lavareda é advogado, jornalista e cientista político

 

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