Centenário: Jornal do Commercio

Eterna vigilância democrática

A crise de representação associada ao uso massivo de redes sociais digitais é uma combinação que fomenta previsões apocalípticas quanto ao futuro da democracia

JULIANO DOMINGUES
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JULIANO DOMINGUES
Publicado em 03/04/2019 às 0:55
Foto: Diego Nigro/Arquivo JC
A crise de representação associada ao uso massivo de redes sociais digitais é uma combinação que fomenta previsões apocalípticas quanto ao futuro da democracia - FOTO: Foto: Diego Nigro/Arquivo JC
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Afirmar que a democracia corre riscos virou um clichê. Já não era sem tempo. Afinal, ela nunca esteve segura. Talvez a manipulação dos algoritmos nas redes sociais tenha apenas tornado isso mais evidente ao aperfeiçoar ameaças autoritárias sempre à espreita e reforçar a crise de representação.

A democracia pode ser minimamente classificada como um sistema político caracterizado por três elementos: (i) instituições por meio das quais os indivíduos manifestam suas preferências; (ii) mecanismos de fiscalização e controle de representantes; e, finalmente, (iii) garantia de liberdades civis.

As ameaças clássicas se manifestam em restrições a esses fundamentos ou a outros derivados deles. É com base nisso, por exemplo, que o Índice de Democracia 2018 da The Economist classifica a Noruega como o país mais democrático do mundo.
A partir de parâmetros semelhantes, a instituição Latinobarômetro chegou a diagnosticar, em 2017, a ocorrência de democracia diabética na América Latina, uma vez que apenas 30% da população se considera satisfeita com o sistema. Em 2018, esse percentual caiu para 24%.

A última década tem assistido a uma queda vertiginosa da confiança em instituições essenciais. A média do crédito dado aos partidos políticos latino-americanos despencou de 24% em 2008 para 13% em 2018. No mesmo período, a confiança no Congresso passou de 34% para 21%. No Brasil, a situação é pior: 6% e 12%, respectivamente.

Ao mesmo tempo, pesquisa da Fundação Getúlio Vargas (ICJ 2017) apontou que, entre brasileiros, a confiança da população nas redes sociais Facebook e Twitter (37%) só é menor do que aquela depositada nas Forças Armadas (56%) e na Igreja (53%).
Esses dados ilustram um fenômeno mundial: a crise de representação associada ao uso massivo de redes sociais digitais. A combinação desses dois elementos fomenta análises e previsões apocalípticas quanto ao futuro da democracia.

Elas costumam se basear no potencial que ferramentas digitais teriam para manipular indivíduos interconectados em escala planetária, principalmente quando se trata de propagação das chamadas fake news. A lista vai de Brexit a Bolsonaro, passando pela eleição de Donald Trump.

A revista The Economist, em matéria de capa da edição de novembro de 2017, noticiou que agentes a serviço da Rússia teriam disparado conteúdo inverídico entre janeiro de 2015 e agosto de 2017 a 146 milhões de usuários de Facebook. Ainda fariam parte do plano a disseminação de 1.108 vídeos no Youtube e a administração de 36.746 contas de Twitter.

Há evidências robustas quanto ao sucesso desse tipo de ação. Estudo publicado na revista Science em março do ano passado apontou que uma notícia falsa se espalha numa velocidade seis vezes maior do que uma verdadeira. E, se for sobre política, a disseminação do conteúdo ocorre três vezes mais rápido do que qualquer outro tema. Quando o cidadão é induzido a tomar decisões a partir de premissas e informações falsas, o sistema democrático se vê comprometido em sua essência.

Estudo da revista Science apontou que uma notícia falsa se espalha numa velocidade seis vezes maior do que uma verdadeira. E, se for sobre política, a disseminação do conteúdo ocorre três vezes mais rápido do que qualquer outro tema


Mas o que hoje pode ser considerado ruim já foi pior. Em 100 anos, segundo dados da instituição Polity IV, o número de países democráticos passou de 11 para 87. Quase metade da população mundial vive em democracias, mais ou menos imperfeitas, enquanto há um século apenas um quinto estava nessa situação, de acordo com levantamento da organização OWID (2016). Em 50 anos, o eleitorado brasileiro cresceu 18 vezes, ao passo que a população quadruplicou, o que indica um amplo processo de inclusão, ao menos, em termos eleitorais.

A expansão da democracia no mundo em um curto intervalo de tempo ainda é um caso de sucesso, a despeito do risco constante e do infindável desafio de qualificá-la para além da participação eleitoral. Em tempos de tentação autoritária travestida em roupagem tecnologicamente sofisticada, a eterna vigilância nunca foi tão necessária.

* Juliano Domingues é professor de jornalismo da Universidade Católica de Pernambuco e bolsista da fundação Fulbright

Confira o especial sobre o centenário do Jornal do Commercio no link abaixo:

jc.com.br/100anos

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