O governo brasileiro abandona sua posição tradicional, se distancia de outros países em desenvolvimento e vota contra uma resolução que renova o mandato da ONU para avaliar o impacto de políticas fiscais em direitos humanos. Ao lado de Estados Unidos, Europa e Japão, o Itamaraty alegou que a proposta ia além do mandato que a entidade poderia dar a um relator para examinar políticas econômicas nos diferentes países.
No projeto de texto, obtido pela reportagem, os governos "reconheciam que programas de ajustes estruturais limitam os gastos públicos, impõem tetos de gastos e dão atenção inadequada para serviços sociais". O texto ainda indica que apenas "poucos países podem crescer" diante dessas condições.
O governo de Michel Temer aprovou, há poucos meses, um teto constitucional para gastos públicos e, portanto, não aceitou o texto na ONU. Em dezembro, outro relator da ONU, Philip Alson, já havia criticado a postura do Brasil, alertando que o novo regime fiscal (PEC55) é "inteiramente incompatível com as obrigações de direitos humanos do Brasil". "Essa emenda bloqueará gastos em níveis inadequados e rapidamente decrescentes na saúde, educação e segurança social, portanto, colocando toda uma geração futura em risco de receber uma proteção social muito abaixo dos níveis atuais", disse.
Apesar do voto contrário do Brasil, a resolução acabou sendo aprovada nesta quinta-feira (23) no Conselho de Direitos Humanos da ONU, por 31 votos a favor e 16 contra.
O projeto, proposto por Cuba, renova o mandato do relator independente da ONU por três anos para avaliar "o impacto da dívida externa e outras obrigações financeiras dos Estados no total desfruto de direitos humanos". Sua função é essencialmente a de examinar medidas de austeridade e exigências financeiras internacionais em políticas sociais, de educação e saúde.
Outra função que o relator ganha é o de desenvolver princípios pelos quais reformas de políticas fiscais teriam de seguir para não afetar o desenvolvimento de direitos humanos, algo que o Brasil rejeitou.
Considerado como um instrumento para criticar receitas do FMI e de instituições internacionais, o relator tem como função a produção de informes e realizar visitas para avaliar o impacto em diferentes governos. Para ser aprovada, a resolução foi apoiada pela China e Índia, além de Equador, Paraguai, Panamá, El Salvador, Bolívia e Venezuela. O Brasil foi o único país latino-americano a rejeitar a resolução e, abandonar sua posição tradicional, o Itamaraty pediu a palavra em Genebra para explicar seu voto e seu alinhamento com países desenvolvidos.
Ao discursar, a embaixadora do Brasil na ONU, Maria Nazareth Farani Azevedo, insistiu que acredita que um governo pode fazer ajustes fiscais e, ainda assim, ser "consistente" com os serviços sociais que oferece a sua população.
"Apesar da mais séria recessão econômica registrada em nossa história, o Brasil tem encontrado o caminho para a recuperação", disse Farani Azevedo. "Ao longo de nove meses da administração do presidente Temer, importantes medidas foram aprovadas e outras reformas estão sob discussão com o objetivo de preservar políticas sociais e salvaguardar os direitos à educação, saúde, moraria e padrão de vida", garantiu.
A embaixadora, que foi a representante do governo Dilma Rousseff na ONU, leu um texto em que criticou a política econômica das administrações passadas. "A expansão de gastos públicos nos níveis observados nos últimos anos não iria garantir progresso social no Brasil. Pelo contrário, a estrutura dos gastos públicos não seria sustentável, com efeitos desastrosos para nossa economia e que poderiam colocar em risco os avanços sociais que queremos proteger", completou.
De acordo com a embaixadora, a proposta de criar princípios de direitos humanos para políticas fiscais violaria o mandato da relatoria e que, para que algo parecido fosse criado, governos teriam de negociar um texto comum. "A resolução vai muito além do mandato de qualquer procedimento especial do Conselho de Direitos Humanos", disse.
"O texto lida com alguns problemas importantes sem relação com o mandato, de forma parcial e desequilibrada, indo contra elementos centrais da atual política econômica no Brasil, em especial nosso esforço para reconquistar o equilíbrio fiscal e, portanto, preservar e proteger políticas sociais no País", disse a diplomata.
"Lamentamos que algumas propostas importantes feitas pelo Brasil em consultas diretas com os principais patrocinadores da iniciativa não puderam ser incluídas no rascunho da resolução", afirmou. "Acreditamos que Estados podem implementar ajustes estruturais consistentes com o objetivo de melhorar serviços sociais, o que a resolução não reconhece", disse.
O governo do Reino Unido também criticou a proposta, indicando que não aceitaria que um relator de direitos humanos tocasse em temas de dívida externa.
Assim que o voto terminou, diversos governos e entidades comentaram a mudança de postura do Brasil. "O governo Temer sabe que os especialistas da ONU são críticos das medidas de ajuste fiscal que têm sido adotadas no Brasil recentemente, como a Emenda Constitucional 95, que congela os gastos para saúde e educação", disse Camila Lissa Asano, coordenadora de Política Externa da Conectas.
"Portanto, não podemos tratar essa mudança no voto apenas como um redirecionamento diplomático, mas sim como uma tentativa deliberada de impedir que os impactos das reformas econômicas sejam avaliados - e eventualmente criticados - pela ONU, num sinal bastante preocupante de como o País deve se portar daqui para frente no Conselho de Direitos Humanos", afirmou.