POLARIZAÇÃO

O consenso está distante do cenário político, diz historiador

O historiador José Alves de Freitas Neto faz uma análise do cenário eleitoral deste segundo turno das eleições

Ângela Fernanda Belfort
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Ângela Fernanda Belfort
Publicado em 09/10/2018 às 18:12
Foto: Diego Nigro
O historiador José Alves de Freitas Neto faz uma análise do cenário eleitoral deste segundo turno das eleições - FOTO: Foto: Diego Nigro
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Em tempos de polarização, o historiador e pesquisador da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) José Alves de Freitas Neto faz uma análise do cenário eleitoral com esse resultado do segundo turno. Ele diz que estamos vivendo uma nova “era dos extremos”, relacionando a crise econômica com a vontade de uma parte da população de querer um “salvador da pátria” para governar o País. Numa das suas visitas ao Recife, concedeu essa entrevista à repórter Angela Fernanda Belfort.

JORNAL DO COMMERCIO - Estamos vivendo uma nova “era dos extremos” com essa polarização que está ocorrendo na política brasileira e que resultou em Fernando Haddad (PT) e Jair Bolsonaro (PSL) no segundo turno?
JOSÉ ALVES DE FREITAS NETO - Sim. A primeira coisa a dizer é que a "Era dos Extremos" é uma referência à obra do historiador inglês Eric Hobsbawm quando definiu que, ao longo do século 20, tínhamos um mundo bipolar entre socialismo e capitalismo. Estamos vivendo uma nova era dos extremos por conta do contexto internacional e no brasileiro, sobretudo pelo cenário eleitoral, no qual as nossas escolhas têm sido feitas no tempo imediato. E com essas escolhas de imediato estamos rifando o futuro, deixando de pensar em processos, em resultados de longos períodos, além de fazer apostas muito virulentas, apaixonadas. Obviamente, a paixão tem o componente de tirar um pouco o nosso controle racional. Entre capitalistas e socialistas, existiam lideranças claras. Hoje, não temos essas lideranças, claramente. É um mundo de extremos onde não há uma liderança explícita que seja responsável pelos seus comandados. Viver numa sociedade de redes tem tornado essa era muito mais perigosa do que as anteriores.

JC - Por quê?
FREITAS NETO –Porque, dentre outras coisas, cada um se sente no direito de dizer o que pensa sem nenhum tipo de filtro ou respeito em relação à diferença, sem querer compreender as motivações e as razões do outro lado. Antes, tínhamos a era dos extremos, pensada a partir de perfis políticos e econômicos como grandes sistemas. Hoje, isso extravasa as nossas relações pessoais, gerando conflitos nos grupos de amigos, de familiares, na sala de aula, em diversos movimentos e instantes da vida pública brasileira. Está tudo muito acirrado. E isso tem a ver com o discurso de que a escolha tem que ser a mais imediata possível, porque nela é preciso destruir o outro. Não estamos criando caminhos para a convergência. A política é conflito, tensão, mas também um momento de construção de consensos. E, hoje, a construção de um consenso no Brasil está mais distante.

JC – E como chegamos a esses discursos tão exacerbados?
FREITAS NETO – É um processo bastante amplo, mas poderíamos sinalizar duas coisas. Uma é que o discurso de Bolsonaro estava latente na sociedade brasileira desde o fim da ditadura militar. E que todos os partidos que ocuparam o poder (MDB, PSDB e PT) nada fizeram em relação a falar mais abertamente sobre a ditadura militar. Então, de alguma maneira, esse discurso mais reacionário, capitaneado pelo Bolsonaro, ficou na sombra como se (os militares) não tivessem responsabilidade alguma sobre os processos políticos que experimentamos depois de 1985. O outro ponto é o contexto depois de 2013, com o PT no poder, os questionamento aos gastos com a Copa do Mundo, as famosas manifestações de junho (de 2013) e depois o processo de corrupção que ficou muito atrelado ao partido (PT). Consequentemente, há um grupo de uma direita reacionária, homofóbica que tem dificuldade de ver a incorporação de pautas legitimadas, de alguma maneira, por governos progressistas, e que aproveitaram o ensejo da corrupção e da crise econômica para darem as caras e aparecerem como uma solução imediatista. Esse cenário não é exclusivo do Brasil. O crescimento da extrema direita está ocorrendo no mundo todo e é um fenômeno. No Brasil, o que me preocupa é que não há uma tradição democrática consolidada para fazer os anteparos aos governantes que tenham ideias mais extravagantes. Comparando diretamente, o Donald Trump (presidente dos EUA) é uma ameaça ao mundo e às propostas progressistas. Mas existe uma tradição mais consolidada de controle de poderes na sociedade norte-americana do que aqui. Ainda antes das eleições do primeiro turno, o candidato a vice de Bolsonaro, disse, abertamente, que tinha que fazer uma Constituição sem que o povo eleja os seus representantes, defendendo o pressuposto que o governo poderia de uma forma autocrática dissolver o parlamento. Ora, que nome é isso que não ditadura? No fundo, estamos, por um lado, indo para uma eleição na qual as medições são de rejeições, e não se trata de dizer se é de direita ou esquerda. Me parece que é muito mais. É uma pauta de consolidação da democracia ou se vamos jogar tudo para o alto.

JC – O senhor está dizendo que eleger um candidato de direita a presidente da República no Brasil é retrocesso?
FREITAS NETO – É um retrocesso eleger uma pessoa de direita com essas características: não respeitar as regras do jogo e que não tem pudor de atacar mulheres, negros, homossexuais, as populações que tradicionalmente foram marginalizadas na história do Brasil. Seria diferente se tivéssemos um candidato a direita, e tínhamos essas opções no primeiro turno, de acordo com as regras do jogo. Ou seja, estamos usando perversamente a democracia para legitimar a escolha de alguém com uma pauta antidemocrática. Democracia não é apenas a eleição, pressupõe respeito à cidadania, à consolidação de direitos os mais variados e à convivência entre os diferentes. Os direitos humanos são uma conquista da civilização e só foram estabelecidos pela ONU (Organização das Nações Unidas) em 1948, depois da barbárie do nazismo. Dizer que isso não é adequado significa o que? Que posso matar nas periferias onde há uma epidemia de violência no País? Quando alguém coloca em pauta um dos alicerces da sociedade e da civilização ocidental, é, no mínimo, questionável os interesses dessas pessoas.

CRISE 

JC – A crise econômica contribuiu para a ascensão desse discurso radical ?
FREITAS NETO – Todas as vezes que ocorreram ascensões de discursos mais radicais foram relacionados às crises econômicas. Quando as pessoas deixam de acreditar que pela sua própria atuação vão resolver os seus impasses econômicos – porque não há mais emprego e a economia está estagnada –, a responsabilidade não é mais só da minha formação enquanto sujeito, mas de um contexto mais amplo. Se visualizo que as politicas econômicas do País não sejam capazes de resolver isso, muitas vezes há uma transferência e se procura por um salvador da pátria. O Brasil passou por uma grande mudança nos últimos 15 anos, incorporando cerca de 40 milhões de pessoas ao mercado que saíram da extrema pobreza. É esse grupo que está sentindo mais diretamente os efeitos da crise econômica e consequentemente parte desse grupo ou quer a volta da bonança daquele período – que é a proposta do Haddad, talvez um pouco milagrosa, encantadora demais, e muito pouco provável que aconteça – ou desejam uma intervenção de uma liderança como a do Bolsonaro. É nítido perceber que, quando ocorrem deslocamentos que desembolsam em crises, há o medo de perder o pouco do seu potencial econômico, e isso tira as esperanças. Foi assim na Alemanha.

JC - E, ao longo da história, o que ocorreu quando o Brasil elegeu um “salvador da Pátria”?
FREITAS NETO – Podemos dizer que os salvadores da pátria remetem a uma tradição bastante antiga que herdamos de Dom Sebastião, a ideia de que alguém voltará para restituir a nossa glória e grandeza. Um outro salvador da Pátria, que tinha uma pauta parecida com a atual de combate à corrupção, foi Jânio Quadros. Ele não teve esse diálogo com o Congresso Nacional. Collor de Mello também não. E a própria Dilma Rousseff foi muito precária nas suas relações com o parlamento. É importantíssimo as pessoas entenderem que, sem o Congresso, não se governa. Muitas vezes, o Congresso é ruim, mas é necessário, porque é o anteparo para um dos poderes, o Executivo. Collor de Mello foi eleito com uma pauta de caçador de marajás, de moralização. É interessante que quase sempre o salvador da pátria vem com uma prerrogativa de moralização, que não foi diferente dos outros sistemas e teve corrupção. A moralização só será efetiva quando tivermos a educação funcionando, as instituições plenamente em funcionamento, a Justiça investigando, a imprensa livre. Por isso, insisto que há uma escolha a partir do imediatismo, sacrificando a construção do futuro.

JC –Houve influência da Lava Jato nesse cenário eleitoral?
FREITAS NETO – Sim, porque temos uma das principais lideranças do País, o ex-presidente Lula, preso (condenado pela Lava Jato a 12 anos e 1 mês e preso na sede da Polícia Federal em Curitiba. E isso sendo uma pessoa com carisma para seus eleitores, a liderança que ele exerce, marca parte dos seus seguidores, ou de alguém que tenha admiração ou um sentimento de gratidão com relação à experiência de ter tido um presidente que saiu do poder extremamente popular (antes de estourar todos os episódios de corrupção a que hoje a sociedade tem conhecimento). Há dois anos, o PT foi derrotado nas eleições municipais tendo Lula solto. Nesse contexto, também se produz parte de um repertório ou narrativa que ajuda a compor essa figura heroicizada.

JC – Por que o senhor diz que este segundo turno é a hora de repensar a sociedade que o País quer?
FREITAS NETO – É a hora de pensar se queremos uma sociedade de direitos iguais para todos. A tradição brasileira é de práticas autoritárias. A República foi instituída por um golpe. Aí depois Floriano (Peixoto) dá um golpe em cima do Marechal Deodoro. Temos vários episódios de golpes ao longo da história republicana brasileira. A atual experiência democrática tem sido a mais longeva desde 1985, mas foi traumática porque ocorreram dois impeachments (o de Collor e o de Dilma), o que não é trivial. Estamos vivendo o processo mais longevo de liberdades políticas desse País. A democracia se faz vivendo com mais democracia e não com ameaças a mesma.

JC – O sentimento da população querendo votar num outsider ajudou Bolsonaro a se concretizar nesse cenário eleitoral?
FREITAS NETO – Sem dúvidas. Todo o tempo, ele fez a campanha da antipolítica. Mesmo sendo parlamentar há 27 anos, esse candidato se apresentou contra tudo, todas as coisas. Tanto é assim que temos dificuldades de dizer o que ele pensa economicamente. Para refletirmos nesse processo do segundo turno, há uma questão importante: como vamos sair dessa crise econômica? E em algumas entrevistas, ele respondeu: Paulo Guedes resolve ou “Posto Ipiranga”. Isso dá uma impressão de despreparo total de que conseguiu atrair sobre si um grande grau de ressentimento da população contra tudo que está aí, mas não consegue dizer, minimamente, como as coisas serão feitas. Vários argumentos apresentados são extremamente contraditórios para não dizer, no mínimo, antidemocráticos. É fundamental perceber que qualquer proposta política que signifique uma padronização da sociedade e não permita o reconhecimento das diferenças é sempre ameaçadora não do outro, que é diferente, mas de mim mesmo, porque eu também sou diferente.

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