lá onde eu moro

Terra de árvores e espigões

Surgido a partir da Capela de Nossa Senhora dos Aflitos, bairro da Zona Norte é um dos mais arborizados da capital e adorado pelas construtoras. Casarões deram origem a edifícios imensos, como conta Nelly Carvalho

Bruna Cabral
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Bruna Cabral
Publicado em 26/03/2012 às 15:01
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FOTO: Igo Bione/JC Imagem
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Cercanias nobres de aguerridas árvores frondosas que assistiram a uma profunda transformação gris numa meia dúzia de anos, os Aflitos nunca fizeram tanto jus ao nome que carregam. Com suas ruas apertadas onde carros e espigões teimam em sufocar um passado verdejante, o bairro nobre de nascença pena de saudade do sossego. Nos "quintais ricos" a que se referia o poeta João Cabral de Melo Neto em seu Morte e vida severina, é da civilização e não mais de frondosas mangueiras a sombra que repousa tão solene quanto opressora quadra sim, quadra também.


Erguido em torno da Capela de Nossa Senhora dos Aflitos, salva pelo gongo da especulação imobiliária e até hoje de pé em meio à balbúrdia da Rosa e Silva, quase na esquina com a não menos tumultuada Conselheiro Portela, o bairro que hoje protagoniza a série Lá onde eu moro deve à bendita e singela construção seu nome. A igrejinha data de 1762 e a história que entrou para os anais recifenses é a de que ela ficava em uma fazenda, que acabou adotando sua alcunha por tabela, para mais tarde batizar 30,6 hectares da maior metrópole nordestina.

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Com ruas apertadas repletas de carros e espigões, bairro nobre pena de saudade do sossego - Igo Bione/JC Imagem
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Andar de bicicleta ainda é mania dos moradores dos Aflitos - Igo Bione/JC Imagem
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Aflitos é um dos bairros mais arborizados da capital - Igo Bione/JC Imagem
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Entre as características que a vizinhança peleja para manter estão as árvores e os pássaros - Igo Bione/JC Imagem
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Nelly conta que foi o Clube Náutico Capibaribe que emoldurou os melhores momentos de sua meninice - Igo Bione/JC Imagem
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Jardins do Hospital Psiquiátrico Ulysses Pernambucano - Igo Bione/JC Imagem
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Jardins do Hospital Psiquiátrico Ulysses Pernambucano, com detalhe para casarão - Igo Bione/JC Imagem
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Jardins do Hospital Psiquiátrico Ulysses Pernambucano - Igo Bione/JC Imagem
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?Da varanda vejo e ouço a revoada de passarinhos de tarde", diz Nelly - Igo Bione/JC Imagem
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Capela de Nossa Senhora dos Aflitos faz oficialmente parte, quem diria, do bairro das Graças - Igo Bione/JC Imagem


Outra versão corrente é a de que o agoniado nome do bairro surgiu nos jardins do Hospital Psiquiátrico Ulysses Pernambucano, outro que quase sucumbiu recentemente ao famigerado e guloso progresso. "Antigamente, quando as pessoas iam visitar os internos, diziam que iam ver os aflitos. Com o passar dos anos, o adjetivo virou substantivo. Mais que isso: nome próprio", conta Nelly Carvalho, professora, autora de vários livros e moradora tão célebre, quanto antiga daquelas quadras outrora sossegadas.


Mas há muito mais polêmicas entre o asfalto e as poucas mangueiras que resistiram de pé por ali do que possa supor nossa vã filosofia. Nos traçados urbanísticos da Prefeitura do Recife, a Capela de Nossa Senhora dos Aflitos faz oficialmente parte, quem diria, do bairro das Graças. Já a, maior e mais recente, Matriz do Espinheiro é integrante dos Aflitos.


As duas igrejas só não protagonizam polêmica nenhuma na geografia sentimental de Nelly, que nasceu, cresceu e se criou entre Aflitos, Graças e Espinheiro. "Para mim, é tudo uma coisa só", simplifica, pragmática que só ela. A professora com memória de elefante conta que frequentava, sem distinção, as duas igrejas. "Primeiro a capela e só mais tarde a matriz." Mas confessa que a pregação do padre nunca foi sua motivação principal. "Ia à missa para encontrar meus amigos, ver e ser vista, isso sim", diverte-se Nelly, que admite: enchia Aflitos de perna na juventude.

Sempre a pé ou de bicicleta, percorria as ruas do bairro incansavelmente. "Não sei como meu pai deixava." Ao ponto de saber de cor o nome dos proprietários de cada casa. "Nem conhecia as pessoas. Mas decorava o nome de todo mundo, casa por casa." Dos imóveis com os quais paquerava naqueles tempos idos e bem vividos, só dois sobreviveram: a que abriga atualmente o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), "onde morava Cláudio Dubeaux", e a belíssima mansão que hoje faz as vezes de lazer social de um prédio na esquina da Rosa e Silva com a Rua Amélia. "Achava aquela a casa mais bonita do mundo. Ali morava João da Costa Azevedo, que recebia gente o tempo todo. Eram festas e mais festas. Eu adorava bisbilhotar aquela opulência toda. Mas hoje fico achando que via tudo com a lente de aumento da infância." Exageros à parte, Nelly conta que foi o Clube Náutico Capibaribe que emoldurou os melhores momentos de sua meninice. "Morava ali na frente. Vivia no clube. Participava de eventos, festas, assistia aos jogos, aos shows. Foi ali, por exemplo, que vi Luiz Gonzaga pela primeira vez. E fiquei fascinada", lembra.


Hoje, o clube não passa de um cartão-postal afetivo. Uma sólida recordação que enfeita a privilegiada vista da varanda do apartamento no 14º andar, que Nelly trocou pela casa enorme onde morou por muitos anos até seus filhos crescerem, na Rua da Angustura. "Meu quintal era cheio de fruteiras. Tinha mangueira, goiabeira, jambeiro. Até sala de cinema eu tinha em casa", recorda. O problema é que começou a ter medo também depois que a violência avizinhou-se. "É muito difícil quando você cresce num bairro. Porque suas referências vão sumindo. Eu subia em árvore, roubava manga lá no Náutico. Até pescar no Capibaribe já pesquei. E hoje vejo minhas netas encasteladas no prédio onde moramos."


Lá de cima de seu palácio vertical, Nelly avista também o British Country Club, um oásis em meio aos espigões, que ela faz questão de não ficar só assistindo. "Tomo café da manhã lá pelo menos duas vezes por semana. Faço ioga, caminho." E foi no Country que ela reencontrou uma das mais doces recordações de sua infância nos Aflitos e arredores. "Alguém descobriu um vendedor de cuscuz no bairro, daqueles que passavam com um tabuleiro e um apito. Pronto. Ficamos fregueses. Toda quarta, o clube todinho come cuscuz", exagera. Mas não exagera sozinha. Um de seus amigos de clube, o médico Saulo Gorenstein, chegou a mandar fazer camisetas para padronizar os comedores da iguaria com gosto de antigamente.


Mas nem é pelos ambulantes, nem pelas casas, muito menos pelos clubes ou igrejas que o coração de Nelly se aflige de amor por seu bairro. Das características mais charmosas que aquela vizinhança peleja para manter, as árvores e os pássaros são as que Nelly mais aprecia. Não cansa de contemplar. "Da minha varanda vejo e ouço a revoada de passarinhos todo fim de tarde. Elas voam do Country para se esconder dos holofotes e se recolhem numa árvore em frente ao meu prédio. É uma algazarra danada até anoitecer", conta Nelly com o entusiasmo de quem sabe que ser vizinha do verde é um privilégio para poucos.

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