LÁ ONDE EU MORO

Lugar de gente aguerrida

Cheio de contrastes, Peixinhos nasceu próspero, mergulhou na pobreza e encontrou redenção num pujante movimento cultural. Gilmar Bolla 8, da banda Nação Zumbi, mostra o bairro em que nasceu e de onde, por escolha, não arreda o pé

Bruna Cabral
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Bruna Cabral
Publicado em 28/04/2012 às 12:10
Igo Bione/JC Imagem
FOTO: Igo Bione/JC Imagem
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Entre Olinda e Recife, um bairro incha. Inaugurado por trabalhadores no início do século passado, Peixinhos amarga hoje tristes índices de desemprego, violência e pobreza. Mas não dá o braço a torcer. Podem faltar indicadores azuis em suas tabelas demográficas ou cartões-postais em sua sinuosa geografia improvisada, mas otimismo e força, aquela população tem de sobra. Quem nasce por ali parece não ter medo de padecer bem longe do paraíso. Desdenha da escassez e ainda faz questão de colocar as cadeiras na calçada para rir das idiossincrasias da vida.

Com mais de 36 mil aguerridos moradores, o bairro que carrega em sua alcunha logo um cardume de um dos símbolos mais evocados da abundância, quem diria, nasceu próspero. Ou, pelo menos, com emprego garantido. É que Peixinhos, que hoje servirá de cenário para a série Lá onde eu moro, surgiu e cresceu ao redor do famoso Matadouro Industrial de Olinda. Um empreendimento grandioso que precisou de muito tempo e de muitas mãos para ficar pronto, nos idos de 1919. E acabou cooptando boa parte desses trabalhadores para seus arredores. Isso porque, para simplificar a vida, muita gente decidiu se instalar ali por perto, no que era para ser uma pequena vila de trabalhadores.

Mas aí veio também a Fábrica Fosforita Olinda S.A., inaugurada com pompa e circunstância por ninguém menos que o então presidente Juscelino Kubitschek, em 1957, e a história começou a mudar. Não necessariamente para melhor. “Do mesmo jeito que chegaram, todos dois um dia foram embora. Aí, acabou-se a economia do bairro toda de uma vez. Veio desemprego, pobreza, favela, só problema”, lamenta Gilmar Correia da Silva, 43 anos, que foi da maternidade direto para Peixinhos e nunca mais arredou os pés de lá.

Na verdade, até já arredou. Um bocado. Visitou “a trabalho” São Paulo, Belém, Curitiba, Brasília, Pará, Estados Unidos, França, Paris, Argentina, Inglaterra, Bélgica, Turquia, Irlanda e por aí vai. Mas sempre faz questão de voltar. “Me enraizei, né? Viajo tanto que tenho essa necessidade grande de me sentir em casa. E minha casa é aqui, onde cresci e conheço todo mundo. Sinceramente, não tenho curiosidade de morar num edifício”, diz Gilmar, que fala como cacheiro viajante, mas é percussionista.

Mais que isso: é um dos fundadores da célebre banda Chico Science e Nação Zumbi. “Trabalhava na finada Emprel e lá conheci Chico. Começamos a conversar sobre música, aí decidi levar ele num ensaio do Daruê Malungo, um projeto social para crianças que mantemos em Peixinhos, e ele pirou. Vivia nos ensaios, dava canja nas apresentações.”

Daí até Chico incorporar o chapéu de palha e enfiar a famosa antena parabólica no mangue foi um pulo. Aliás, dois. Gilmar pulou também. E virou Gilmar Bolla 8. “Me chamavam de Bola 7 na Emprel por causa de um personagem de uma novela, mas Chico brincava que eu era o bola 8. Aí, ficou.”

Sorte? Coincidência? Gilmar prefere acreditar que a música era sua sina. “Meu pai era radiotécnico. Entendia tudo de rádio. E adorava música. Tinha muitos discos. E também alugava som para festas, eventos. Acho que está no sangue mesmo.” E é justamente por causa desse seu envolvimento visceral com a música, que Gilmar não deixa de visitar sempre que pode o ex-matadouro, que virou Nascedouro de Peixinhos.

“Nos anos 70, o matadouro foi desativado. E só muito tempo depois voltou a ser ocupado pela comunidade. A molecada jogava bola, usava e abusava do espaço. Até que na década de 90, virou um centro social e cultural.” Com estúdios de gravação, ilha de edição e outros equipamentos, o lugar sedia cursos, shows, além de vários eventos e projetos. “Historicamente, tudo começa por aqui nesse bairro.”

No trajeto sentimental de Gilmar Peixinhos afora, a feira do Areial também é parada imprescindível. Em mais de 50 barracas, são comercializados frutas, verduras, grãos e todo tipo de comestível que se possa imaginar. “É por causa dessa feira que ninguém morre de fome em Peixinhos. É tanta barraca que no terceiro dia, a comida é quase de graça”, diz.

Na mesma área, acontece a igualmente célebre, porém clandestina feira do troca. “Você encontra de um tudo. Claro que tem coisa roubada. Mas também tem muito pai de família se desfazendo de seus bens. O troca é uma tradição que precisa ser respeitada”, defende o músico.

Outro anticartão-postal célebre ao qual Gilmar não deixa de render homenagem é a temida Rua do Condor. “Nos anos 80, tinha mesmo muita violência. Hoje em dia é mais fama. Tudo que acontece lá por dentro da comunidade dizem que foi na Rua do Condor”, argumenta. O fato, pondera, é que a rua é uma espécie de divisor do bairro. Dela em diante, os moradores não têm sequer endereço. “Aí, o bicho pega.”

Acima de qualquer suspeita, a Rua São Sebastião, onde Gilmar brincava na infância é o oposto. Para lá de pacata, abriga a Capela de São Sebastião, que recebe uma procissão no mínimo inusitada todo mês de janeiro. “Os meninos saem daqui de Peixinhos de bicicleta para buscar a procissão. Eu adorava fazer isso quando era criança.”

Hoje em dia, quando necessita de um norte, não é à igreja que Gilmar costuma recorrer. “Antes de uma viagem, quando preciso de um conselho, de uma cura ou de um pouco de paz é no terreiro de mãe Vera que vou bater”, diz. Simpáticas que só elas, Vera, que tem “mais de 70 anos e cinco AVCs no currículo” e a filha, Márcia, não são de negar ombro amigo a ninguém. E ainda brindam os chegados com bolinho quente e boa conversa.

Além dos amigos, a Praça da Caixa-d’Água, “que a gente batizou de praça de alimentação, de tanta lanchonete que tem ao redor”, é uma das poucas opções de lazer naquele amontoado de casinhas improvisadas entre as estreitas ruas de barro onde o esgoto corre a céu aberto. “Que esgoto? Isso é Água Rabelo. Deixa os meninos mais fortes”, brinca Gilmar, que cresceu como toda e qualquer criança de sua comunidade: desafiando a sorte entre uma poça malcheirosa e outra.

Igo Bione/JC Imagem
Músico Gilmar Bolla 8, da banda Nação Zumbi, mostra o lugar em que nasceu - Igo Bione/JC Imagem
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Cheio de contrastes, bairro nasceu próspero com o antigo matadouro - Igo Bione/JC Imagem
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Cheio de contrastes, bairro nasceu próspero com o antigo matadouro - Igo Bione/JC Imagem
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Cheio de contrastes, bairro nasceu próspero com o antigo matadouro - Igo Bione/JC Imagem
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Músico Gilmar Bolla 8, da banda Nação Zumbi, mostra o lugar em que nasceu - Igo Bione/JC Imagem
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Cheio de contrastes, bairro nasceu próspero com o antigo matadouro - Igo Bione/JC Imagem
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Praça da Caixa-d?Água é das poucas opções de lazer - Igo Bione/JC Imagem
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Cheio de contrastes, bairro nasceu próspero com o antigo matadouro - Igo Bione/JC Imagem

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