Inclusão

Pelo direito de ser entendido

Ir ao médico, conversar com o guarda de trânsito, estudar. Em pleno século 21, tarefas corriqueiras ainda são desafios enormes para os 345 mil brasileiros surdos. Respeito é tudo que eles querem

Bruna Cabral
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Bruna Cabral
Publicado em 07/05/2012 às 15:38
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Estudar, trabalhar, ir ao médico, relacionar-se com a família, fazer amigos, ter acesso a cultura ou mesmo jogar conversa fora. Rigorosamente tudo o que se convencionou chamar de direitos humanos nas últimas décadas continua sendo obstáculo para os quase 345 mil brasileiros condenados ao silêncio total e mais de nove milhões com algum grau de deficiência auditiva. Na rua e até dentro de casa, são tantas as barreiras impostas pela sociedade aos surdos, que a maioria opta por viver em guetos para não ferir seu orgulho nas sólidas paredes erguidas pelo preconceito. Até quem não dá ouvidos à intolerância sabe que cidadania é direito que só se conquista no grito em países como o Brasil.

Mas nem sempre foi assim. Boa parte desse apartheid sonoro se deve, quem diria, a um aclamado ídolo mundial. Além do telefone, o famoso Graham Bell inventou a ditadura da oralização. Ele teria começado a estudar física acústica justamente porque tinha um surdo na família. "E depois de criar o esboço de um aparelho auditivo, chegou à conclusão de que a saída era habilitar o surdo a escutar e falar, em vez de investir numa língua própria deles, como defendia o francês Charles-Michel de l’Épée, que, até aquela altura dos acontecimentos, era a principal referência no assunto no mundo inteiro", conta Liliane Longman, presidente do Centro Suvag de Pernambuco, ONG privada dedicada a educar crianças e jovens surdos.

No chamado Congresso de Milão, em 1880, a metodologia de Graham Bell triunfou definitivamente sobre as boas intenções do visionário que ficou conhecido como o abade l’Épée. A língua de sinais inventada na França foi condenada à clandestinidade e até os casamentos entre surdos foram proibidos mundo afora. Era como se a surdez passasse a ser, de uma hora para outra, uma espécie de praga a ser combatida nas escolas. "Era muito frustrante. Somente 5% a 10% dos surdos conseguiam se adaptar àquele sistema. E todos, sem exceção, sofriam bastante", recorda Liliane, que conhece de cátedra com quanta dor se empreende um projeto de oralização dentro e fora da sala de aula.

Sua primogênita, Carol Longman, hoje com 38 anos, diploma e filha "ouvinte", nasceu surda e foi educada para subverter suas limitações acústicas. "Sentia que precisava falar para ser respeitada. E fiz um esforço sobre-humano para conseguir", conta a aguerrida menina que virou professora de português do Suvag, depois de passar metade da vida sentindo-se estrangeira em sua cidade. "Consigo falar e me comunicar com ouvintes, se quiser. Mas continuo surda. E é entre meus pares que me sinto mais à vontade."

Também professora do Suvag, Betiza Botelho, 42, foi outra que penou para oralizar-se a pulso. Mas fez questão de não deixar a autoestima sucumbir aos muitos golpes que já sofreu vida afora. "Se existe alguma dificuldade em lidar com minha condição, é da sociedade. Não minha. Por que tanta discriminação? O ouvinte fala? Agora nós também falamos", diz Betiza, referindo-se à redentora Língua Brasileira de Sinais (Libras), que só foi reconhecida como meio legal de comunicação e expressão no Brasil em 2002, livrando os surdos de quase dois séculos de penitência. "Meus olhos escutam e minhas mãos falam. Isso é suficiente para que eu consiga ser feliz, produtiva e cidadã", ensina a professora, que não cansa de celebrar a liberdade tardia de quem só aprendeu seu idioma nativo aos 21 anos.

DESAFIOS
Mas entre o direito a se comunicar com sinais e a cidadania vai uma distância. "A escola agora tem intérpretes de Libras, mas os surdos ainda sentem dificuldade no aprendizado, porque o português sempre será uma segunda língua. Além disso, aprender um idioma sem escutá-lo não é nada fácil", diz Liliane. O resultado é baixa escolaridade, que só aumenta a dificuldade que os surdos enfrentam para se inserir no mercado de trabalho. "Mas nada é pior que a prestação de serviços públicos. Ir ao médico sem intérprete, por exemplo, é impossível. Nos hospitais, ninguém fala Libras. Nem nas lojas, nos equipamentos culturais, muito menos nas blitzes. Até na família, o relacionamento é difícil. Por isso, os surdos desenvolvem uma espécie de amor parental uns pelos outros."

Marcelo Amorim, 31, já esbarrou em cada um desses obstáculos. Mas não parou. Nem lembra quantas vezes se desentendeu com guardas de trânsito, só vai ao médico com a mãe e chegou a desistir de frequentar a escola de tão mal que se sentia quando tentava acompanhar o ritmo dos colegas ouvintes. "Passei cinco anos surfando para esquecer do mundo. Só queria viver dentro do mar, porque não precisava de palavras para me comunicar com as ondas. Me sentia muito bem em cima da prancha", conta. E só desceu de lá quando achou uma escola bilíngue, onde todo conteúdo era transmitido por professores aptos em Libras e português.

Gostou tanto de estudar, que virou estatística no Estado. É um dos poucos surdos que conseguiram chegar à faculdade. "Cursei sistemas de informática, metade em Porto Alegre e metade em Vitória. Passei seis anos longe de casa." E nem assim cansou. Agora está fazendo mestrado na área de design. "Por que os ouvintes podem e eu não?", questiona Marcelo, que desdenha com gosto do senso comum. "Já me ofereceram aparelho, cirurgia, mas, sinceramente, não tenho vontade de ouvir. O mundo de quem ouve é igual ao meu. Nem melhor, nem pior. Não tenho a menor paciência para me comunicar com ouvintes que insistem em agir como cegos. Eles são cansativos."

E, às vezes, cruéis. Que o diga o técnico do time de futebol da Associação dos Surdos de Pernambuco (Asspe), André Antônio do Nascimento, 49. Craque desde menino, ele transformou a filha em campeã brasileira de handebol, garantiu dois títulos estaduais ao time da Asspe, mas nunca realizou seus dois maiores sonhos. Nem se formou em educação física, nem virou jogador de futebol de um time grande. "Nunca me deram oportunidade só porque sou surdo. Futebol eu sei jogar. Só me falta a audição", lamenta André, que já perdeu muitas partidas para a vida, mas não desiste de jogar. "Sou apaixonado pela gorduchinha. E isso ninguém me tira."

Para ele e também para Carol, Marcelo, Betiza e tantos outros, já está mais do que na hora de os ouvintes aprenderem a fazer sua parte. Aliás, a fazer parte de um todo heterogêneo. "A humanidade precisa aprender a conviver com as diferenças, respeitando todas as línguas e culturas", defende Mariana Hora, diretora da Federação Nacional de Educação e Integração dos Surdos (Feneis).

Bons exemplos não faltam. Um deles é o grupo percussivo Batuqueiros do Silêncio, que toca de maracatu ao que der na telha, e é formado única e exclusivamente por surdos, com exceção do maestro e pai da ideia, o ouvinte Irton Silva ou simplesmente Batman. "Sou negro, rasta. Me sinto melhor entre aqueles que a sociedade insiste em excluir”, brinca. Mas leva muito a sério a musicalização de surdos. “Desenvolvi há três anos um projeto batizado de Som da Pele para ensinar música utilizando luzes. Para isso, inventei um equipamento que cria sequências luminosas para ajudar os surdos a entender e sentir cada ritmo."

O resultado foi surpreendente. Uma ruidosa revolução. "Eu que encarava a música como uma impossibilidade aprendi a tocar três instrumentos", festeja Gilmar de Melo, 38, presidente do movimento LGBT surdo de Pernambuco e inimigo íntimo do preconceito. "Já fui vítima de muita provocação. Hoje tenho orgulho e fico feliz poelo que sou e faço."

Nos tambores ao lado, Karina Guimarães, 26, digitadora; Iara Sena, 30, estudante universitária, e Liliane Saúde, 28, dona de casa, também encontraram na ideia engenhosa de Batman realização pessoal, alívio para as dores do cotidiano e, principalmente, luz para enxergar melhor o lado bom da vida. Cidadania agora é como música para seus olhos.

serviço

Suvag, Feneis, Batuqueiros do Silêncio

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