SAÚDE III

Modelo de atendimento domiciliar evoluiu

Além de atender em casa, médico da família mantém consultório na comunidade, garantindo qualidade de vida a paciente e familiares

Cinthya Leite
Cadastrado por
Cinthya Leite
Publicado em 04/06/2012 às 0:38
Flora Pimentel / JC Imagem
Além de atender em casa, médico da família mantém consultório na comunidade, garantindo qualidade de vida a paciente e familiares - FOTO: Flora Pimentel / JC Imagem
Leitura:

Preocupado com uma seleção de emprego, o senhor Alfredo marcou uma consulta com Dr. José. Entrou no consultório constrangido, por achar que estava tirando o lugar de alguém que poderia precisar mais do atendimento do que ele. “Estou angustiado porque me pediram um tal de currículo. Não tenho a menor ideia do que seja”, disse Alfredo.

Ao mostrar interesse pela conversa, a fim de quebrar a ansiedade do paciente, Dr. José diz que a escola da comunidade ensina a fazer currículos. Só isso já deixou Alfredo aliviado, o que fez criar um clima favorável para a consulta. “Agora, vamos aproveitar para ver os exames que passei para o senhor no nosso último encontro?”, indagou o médico.

Alfredo e Dr. José são personagens fictícios apresentados na oficina de capacitação da Sociedade Brasileira de Medicina de Família e Comunidade (SBMFC). No diálogo deles, dá para perceber que esse médico especialista tem foco na pessoa de maneira integral, e não só na doença. É um expert em compreender os sentimentos e as expectativas dos pacientes, com o intuito de identificar que pode haver impacto da doença na vida pessoal, familiar, profissional e social. 

“Somos médicos de uma área que ganhou firmeza em 1994, com a criação do Programa de Saúde da Família (PSF), que tem como preferência a nossa especialidade. Mas profissionais de outros segmentos podem atuar nessa estratégia”, diz o médico de família e comunidade Rodrigo Cariri. Ele fundou, em 2006, com o médico Oscar Coutinho, a residência em medicina de família e comunidade da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). 

É Cariri que estimula a participação dos residentes na videoconferência semanal promovida pelo Núcleo de Telessaúde (Nutes) do Hospital das Clínicas da Universidade Federal de Pernambuco (HC/UFPE). “É um momento em que grupos da UFPE, da Universidade de Pernambuco (UPE) e da Universidade Federal do Vale do São Francisco (Univasf) trocam ideias sobre a nossa especialidade.” 

Em linhas gerais, pode-se dizer que os médicos de família e de comunidade são coordenadores do cuidado. E mais: são capacitados para lidar com vários dos problemas de saúde que as pessoas podem apresentar. Bom saber que, no Brasil, cerca de 50% da população estão cobertos pela Estratégia Saúde da Família (ESF), nome que hoje denomina o PSF. 

“Em alguns Estados do Nordeste, por exemplo, 90% dos indivíduos estão resguardados por essa atenção primária à saúde (APS)”, informa o médico da especialidade em questão Tiago Trindade, que escreveu com Rodrigo Cariri um dos capítulos do recém-lançado Tratado de medicina de família e comunidade: princípios, formação e prática (2 volumes, Artmed Editora, 2.222 páginas, R$ 430). 

Já em países como Cuba, Inglaterra, Holanda, Portugal, Espanha e Canadá, praticamente 100% das pessoas são cadastradas em programas coordenados por médicos de família e comunidade. Assim como os especialistas que atuam nessas nações, aqueles que trabalham no Brasil se encarregam de um determinado território – que, segundo o Ministério da Saúde, deve abarcar até 4 mil pessoas. Na prática, a base geográfica ultrapassa esse teto. 

É o caso da Comissão de Saúde Independente de Roda de Fogo (Cosirof), no bairro dos Torrões. Por lá, a equipe da médica de família e comunidade Lara Ximenes é responsável por mais de 5 mil moradores. “Para um cuidado eficaz, precisamos entender como funciona cada família e o entorno social delas”, relata Lara, que atende na unidade de saúde de Roda de Fogo e faz visitas domiciliares a quem se encaixa nos critérios de prioridade, como pessoas que não podem ir até os consultórios devido a alguma limitação. 

O garoto Wellington Henrique dos Santos, 14 anos, que tem paralisia cerebral, enquadra-se nesse contexto. Na última semana, Lara foi à casa dele para uma consulta de rotina. Com o jovem, tudo sob controle. Ele tem participado das sessões de fonoaudiologia. E vai até se submeter a injeções de toxina botulínica – medicamento que, no caso dele, é usado para controlar a rigidez excessiva dos músculos. 

Nas entrelinhas da conversa com a mãe do garoto, a dona de casa Maria de Lourdes dos Santos, 48, a médica percebeu que os cuidados deveriam ser direcionados a ela naquele momento, e não só a Wellington. Durante o bate-papo sobre o filho, ela deixou escapar que toma medicação para deter a hipertensão. Assim, Lara aferiu a pressão arterial dela, que estava 17 por 12 – bem descontrolada. 

Com o prontuário em mãos, a médica percebeu que Maria de Lourdes não vai à unidade de saúde desde 2006. E a essa altura, o foco da consulta deixou de ser só Wellington. “Com essa taxa de pressão, a senhora pode ter um derrame e muitos problemas no coração”, disse Lara a Maria de Lourdes. 

“Para evitar tudo isso, não tem que tomar apenas remédio. É preciso tirar o sal da comida e fazer uma caminhada. A saúde da senhora é tão importante quanto a do seu filho”, alertou. E dessa maneira, a médica e a dona de casa fizeram um pacto: a irmã de Wellington ficaria algumas horas do dia com o garoto para Maria de Lourdes cuidar um pouco de si. 

Ainda em Roda de Fogo, a medicina de família e comunidade ganha corpo através de encontros de educação para adolescentes – considerados população de risco e de vulnerabilidade social. Recentemente, os jovens bateram um papo, mediado pelo estudante de medicina Leandro Nóbrega, sobre sexualidade. A postura dele deixa claro que, ao atuar nesse segmento, o profissional deve cuidar de pessoas independentemente do tipo de doença, sem deixar de lado características sociais. 

É uma conduta também adotada pela médica de família e comunidade Verônica Cisneiros, presidente da Associação Pernambucana de Medicina de Família e Comunidade (APEMFC). Ela faz parte de uma das equipes do bairro do Ibura. “Recebo os pacientes com hora marcada e reservo, no mínimo, 30 minutos para cada atendimento”, diz a médica. 

Na última semana, ela recebeu a dona de casa Maria da Paz Ramos, 65, cuja queixa principal era insônia. Cautelosamente, Verônica investigou as possíveis causas de a paciente se manter acordada à noite. Fez uma série de orientações e prescreveu medicação.

“Não somos psiquiatras, mas devemos ter habilidade para resolver as angústias de ordem mental também. Só encaminhamos para outros especialistas quando tentamos o tratamento e não conseguimos resolver o problema”, diz a médica, que representa bem a medicina de Hipócrates, aquela voltada para as pessoas, interessada pelas fragilidades do ser humano e associada a uma postura acolhedora.

 

Últimas notícias