Comportamento

Literatura: nova perspectiva de vida na terceira idade

Cada vez mais homens e mulheres descobrem na literatura uma aliada para preencher os dias quando a rotina desacelera

Bárbara Buril
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Bárbara Buril
Publicado em 13/04/2013 às 13:00
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Cada vez mais homens e mulheres descobrem na literatura uma aliada para preencher os dias quando a rotina desacelera - FOTO: Priscila Buhr/JC Imagem
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Quando tinha quase 80 anos, Michelangelo dirigiu, com muita vitalidade, os trabalhos de construção da Basílica de São Pedro, na Itália. Com quase 90, Pablo Picasso pintou uma série de 140 obras, apenas durante o ano de 1969. Tais proezas artísticas demonstram que a inspiração não tem idade para chegar. Ou se acentuar. Mostram ainda que, na fase mais madura da vida, o homem pode se deparar com uma necessidade tremenda de se expressar, através de tintas, notas musicais, palavras ou qualquer outra linguagem que permita a transposição de um rico universo subjetivo para o olhar do outro. São diversas as pessoas que, quando se aposentam, ganham tempo para abrir as gavetas da memória, vasculhar as próprias vivências e transformá-las em arte.

Com a experiência de mais de 60 anos de vida, há quem publique livros, ganhe prêmios e – de quebra – dê protagonismo à sua maior paixão: a escrita. Um hobby que, para grande parte dessas pessoas, teve que ficar em segundo plano uma vida quase inteira por questões práticas: era preciso ganhar dinheiro, fazer um nome na profissão, cuidar da família e, nas horas vagas, descansar. Na melhor das hipóteses, sobrava algum tempo para alimentar aquele arquivo de textos pessoais, mas nunca com a frequência desejada, devido às poucas brechas na agenda cotidiana. A aposentadoria seria, então, uma oportunidade irresistível para se observar, traduzir e – por que não? – mostrar-se para o mundo.

A enfermeira aposentada Eni Maria Ribeiro Teixeira, que prefere não dizer a idade, viveu cada uma dessas etapas, mas, antes, vivenciou a crise existencial de quem se depara com uma imensidão de tempo livre e não sabe o que fazer com ele. “Assim que me aposentei, aos 49 anos, vivi um desespero gigante. Eu me perguntava o que deveria fazer da minha vida”, conta ela. A primeira resposta foi uma graduação. Mas durante os dois semestres de direito que cursou, questionava-se bastante. Não entendia o que fazia ali, dentro daquela sala fechada, enquanto poderia estar lá fora, aproveitando o sol. 

Decidiu, então, sair do curso e, logo em seguida, começou a participar das oficinas literárias da escritora Lucila Nogueira e do escritor Raimundo Carrero. O primeiro livro de Eni, Iluminuras, escrito em 1994, é constituído por textos íntimos, em que se destacam técnicas literárias como o monólogo interior e o fluxo de consciência. Durante a oficina de Carrero, de que participou por três anos, escreveu a obra Os frutos da casa, que conta a trajetória da família Ribeiro e já está na segunda edição. O próximo projeto, também genealógico, será escrever a história da vida de sua irmã. “Ainda não dei início a ele, mas já tenho aqui em casa uma pilha de documentos dela que serão fontes de pesquisa”, conta.

A família, aliás, é um tema bastante comum nessa literatura, nascida sob o signo da experiência. O engenheiro aposentado Heleno Melo, 74, publicou, em 2008, um livro sobre os seus (até então) seis netos, chamado Netos, poemas em movimentos. “Incluí aquelas historinhas curiosas que você escuta das crianças”, conta Heleno. Agora, que nasceram outros dois netos, ele promete escrever uma segunda versão do livro. Heleno é o novato da oficina literária de Raimundo Carrero. Está inscrito há “somente” quatro anos. 

É que todo mundo que resolve participar das reuniões promovidas pelo renomado escritor pernambucano não quer mais sair. Lá, cerca de dez escritores leem textos referenciais da literatura mundial, discutem-nos, aprendem as técnicas da escrita, colocam em prática e discutem as próprias produções. O grupo, formado atualmente por Enaide Vidal, Heleno Melo, Rejane Gonçalves, Heitor Brito, Ivanilde Moraes, Rejane Paschoal, Eleonora Castelar e Jassira Barros, se reúne com Raimundo Carrero semanalmente, às quintas-feiras, na União Brasileira de Escritores (UBE), em Casa Forte. 

O sucesso das oficinas tem muito a ver com a visão de Carrero sobre a prática da escrita. “Qualquer pessoa pode escrever, essa capacidade é inata. A oficina ajuda a organizar e lapidar a técnica, com questões como ritmo e andamento na prosa. Isso não se aprende de nascença, é preciso ouvir de outra pessoa. Reunimos muitas pessoas que gostam de ler, mas precisam aprimorar a escrita e isso só se consegue com prática”, explica Carrero. O aprendizado é tanto nos encontros, que diversos participantes já ganharam prêmios de literatura com as obras produzidas durante as oficinas.

Um desses prêmios é voltado exclusivamente para a terceira idade. É o Talentos da Maturidade, promovido pelo Banco Santander, que premia produções nas categorias artes plásticas, música vocal, literatura e fotografia. O concurso é bienal e acontecerá neste ano, sem data definida por enquanto. O Talentos da Maturidade foi criado em 1999, em homenagem ao Ano Internacional do Idoso, e já teve 13 edições, recebendo durante esse período mais de 300 mil participantes em todo o País. O prêmio para os vencedores de cada categoria é de R$ 7 mil.

Na edição de 2005, o jornalista recifense aposentado Valdir Coutinho, 70, venceu na categoria literatura com a obra Ângelus. Chegou a ir a Porto Alegre receber o prêmio, mas lamenta não ter visto o seu livro publicado. “O prêmio deveria ser a publicação da obra. Isso é bem mais importante para a gente”, diz Valdir. Sinal de que – para ele e para muitos dos que se dedicam à literatura na maturidade – o negócio da escrita não envolve dinheiro. E, sim, paixão.

A professora de artes aposentada Rejane Paschoal, 63, também ganhou um prêmio. Aliás, dois. Além de receber a menção honrosa do I Concurso Cepe de Literatura Infantil e Juvenil, em 2008, pelo livro Histórias do encantarerê, teve sua obra publicada pela editora. Composto por vários contos, o livro é todo narrado pelos personagens Nando, Tico, Dudu e Aninha, que se tornam contadores de histórias após tentarem resolver um mistério envolvendo um andarilho. “Tenho um universo infantil muito vivo, já que convivi com muitas crianças enquanto fui professora de artes da Prefeitura do Recife”, revela Rejane. Exemplo de que as vivências do passado podem, muito bem, ser retomadas e transformadas em produtos novos, condizentes com o presente. 

CARINHO DE VÓ

O universo infantil também foi o motivo de inspiração da bacharel em direito aposentada Lilá Maciel Lyra, 86, que escreveu o livro Tem jambo e outras histórias para preservar contos narrados por ela a seus filhos e netos. Quando suas duas filhas foram à França e à Inglaterra realizar mestrado, levando com elas os três netos mais velhos, Lilá viu bater a saudade. “Sugeri a ela que escrevesse as histórias que contava aos meninos, já que as narrativas eram as mesmas, mas ela sempre trocava os nomes dos personagens. Vez ou outra, algum dos meninos dizia: ‘não, vovó, o nome não é esse, mas sim aquele’. Se ela escrevesse, não erraria mais”, conta o seu companheiro por mais de 50 anos, Francisco Décio Lyra, 89. 

Manualmente, Lilá escrevia as histórias, que eram digitadas posteriormente por familiares. Até que, no seu aniversário de 80 anos, seus cinco filhos reuniram os contos da matriarca e publicaram o livro. A obra recebeu elogios dos escritores Ariano Suassuna, que assina a apresentação do livro, Raimundo Carrero e da atriz Geninha da Rosa Borges. E ganhou uma segunda edição.

Com problemas de saúde e uma necessidade de expressão literária que não sucumbiu às dificuldades, Lilá delegou ao marido a tarefa de escutar os novos contos e escrevê-los. “Ela contava as histórias para mim, eu as escrevia e mostrava de volta a ela. Depois, ela me apontava as correções necessárias. E assim foram feitos seis contos da nova edição do livro”, conta Décio. Tem jambo ganhou, assim, uma versão ampliada, com uma bela roupagem gráfica, concebida pela neta Juliana Lyra Brayner e pela amiga Clara Simas. Tudo feito em processo colaborativo.

Segundo Décio, “o lançamento da segunda edição ocorreu porque ela me dizia que queria arrecadar dinheiro para a Pastoral da Saúde da Várzea com a verba do livro”. No dia do lançamento, na Igreja da Caxangá, Décio assinava as dedicatórias por Lilá. Ali, ao lado do marido, ela via ganharem o mundo as histórias que preencheram por tanto tempo o vazio deixado pelos netos. E ainda realizava, com a ajuda da literatura que demorou a praticar, um de seus maiores desejos: o de aproximar a Igreja dos mais pobres.

 

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