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Neném Brennand: a simplicidade como estilo

Filha de Francisco e Deborah Brennand, a gestora da Oficina da Várzea acredita no trinômio casa, família e trabalho como receita para a tranquilidade

Flávia de Gusmão
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Flávia de Gusmão
Publicado em 22/03/2015 às 6:30
Ricardo B. Labastier/JC Imagem
Filha de Francisco e Deborah Brennand, a gestora da Oficina da Várzea acredita no trinômio casa, família e trabalho como receita para a tranquilidade - FOTO: Ricardo B. Labastier/JC Imagem
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"Pega o neném, Francisco! Tira o neném do berço! Olha o neném chorando, Francisco!" O pedido de ajuda partia de Deborah e o solicitado Francisco em questão era o mítico Brennand, aquele que, de uma olaria em ruínas, construiu o templo que colocou o bairro da Várzea no mapa dos pontos obrigatórios a visitar no Recife. Daquele instante em diante, consagrado pela insistência de uma mãe de primeira viagem que temia pela compleição franzina da filha recém-nascida, o nome Maria da Conceição cedia lugar ao apelido: Neném. Assim ficou para sempre conhecida a primogênita do casal. O Maria da Conceição prosseguiu na certidão de nascimento e na homenagem que o casal prestava à tia-avó paterna, tida e havida como uma mulher de fibra e, ao mesmo tempo, suave e querida por todos.

O nome pode não ter grudado na pessoa, mas as características atribuídas à ancestral, sim. Os cabelos prematuramente embranquecidos, como os da mãe, são a marca registrada de Neném Brennand. Assim também costumava ser seu nariz, também xerocado da matriz. E daqui a pouco vocês vão entender como essas duas partes estão interconectadas.

Aos 28 anos de idade, em 1978, já os tinha da cor que são hoje: branco de neve sem sequer um fio negro, que confere aquela nuance acinzentada descrita como "sal e pimenta". Se hoje a exibição pública da despigmentação capilar ainda provoca murmúrios de desaprovação em sociedade - apesar do movimento GreyPower ou SilverPower, que estimula as mulheres a assumirem o encanecimento próprio da idade/herança genética - , há 37 anos isso era algo inconcebível como parâmetro de beleza.

Neném deixou de pintar os cabelos quando recebeu a notícia de um câncer de pele, com prognóstico preocupante. O tratamento exigia a extração do tumor e, com ela, a reconstrução do nariz, que ganhou novo formato. "Era a parte do rosto de que eu mais gostava em mi"”, assente ela, dona de uma pele impecável e olhos que nunca deixam de brilhar. "De repente, eu caí em mim a respeito da verdadeira importância que as coisas devem possuir. E aí, naturalmente, parei de tingir os cabelos, algo que parecia crucial para minha autoestima, deixou de ser tão necessário", conta. O que prova que a confiança - aquela que traz a graciosidade - vem sempre do conteúdo, nunca apenas da forma. Se a gente acredita, a gente passa a ser.

Ser convencional era algo que não estava programado para a vida da filha mais velha de um casal de artistas. O pai se enfurnava em seu ateliê no Engenho São Francisco de manhã e de lá só saía no começo da noite. A mãe era uma poetisa disfarçada de dona de casa. Foi, aliás, "desmascarada" pela sua Neném (naquela época já uma mocinha). Num dos muitos almoços dominicais, quando intelectuais do alto clero se reuniam em torno da mesa da família, a primogênita correu e, sorrateiramente, passou a mão nos poemas escritos por Deborah e foi diretinho entregar a um dos comensais mais chegados ao clã, Ariano Suassuna. O que os olhos do mestre armorial leram foram versos desta lavra:

Declaração de Amor

Ontem disseste 

sisudo, como todo saber 

Esta flor é da família das violáceas 

o nome correto é  violeta tricolor. 

Eu disse é amor perfeito... 

Amarelo e roxo salpicado de negror 

severamente reclamando 

gotas de terra nas folhas. 

Pensei será isto perfeito?

Diante de uma Deborah morta de vergonha, Ariano profetizou o óbvio: "Ela é uma grande poetisa"

Tudo nesta fase da vida de Neném Brennand era exceção. Não foi educada na escola, mas em casa, até os 10 anos, pela professora Isabel. Seus amigos eram os filhos dos vizinhos e dos funcionários da propriedade, com quem gastava o tempo de folga escalando árvores e pescando camarão nos vários riachos que cortavam a Várzea.

Pouco antes de fazer o exame de admissão para o Colégio das Damas, a mãe achou que o choque de adaptação seria forte demais e, como uma espécie de profilaxia, a matriculou no Educandário Nossa Senhora do Carmo, no mesmo bairro. A passagem para a escola frequentada pelas meninas da alta sociedade não se deu sem trauma, como previa a mãe. "Lembro sem alegria das grades nas janelas, a sisudez das freiras, que não tiravam nada de letra. Tudo era muito sério", diz. Logo pra ela, que troca tudo por reuniões sonorizadas com risos.

Neném viu brotar a hoje mundialmente conhecida Oficina Brennand. Presenciou como cada pedacinho dos fornos foram restaurados, como se fosse o curioso caso de Benjamin Button: aquela superfície ir voltando no tempo e renascendo da decrepitude. Sendo povoada de beleza e vigor. Estava lá desde o começo, quando Francisco comprou a propriedade do avô, Ricardo, decidido a "viver de arte". Foi recrutada pelo pai para "dar uma ajuda" e está lá até hoje, desempenhando a mesma função. É Neném, ao lado da irmã caçula Maria Helena, quem cuida da agenda do pai e resolve absolutamente tudo: da marcação de exposições a aprovação para confecção de catálogos; do aluguel do espaço para eventos aos cuidados com a preservação do entorno, das peças e, sobretudo, do valor da marca Brennand. "Eu mesma me impressiono quando chego aqui e parece que estou vendo tudo pela primeira vez. E lá se vão 44 anos."

O pai, protegido das decisões graúdas e miúdas que envolvem a gestão de tamanho patrimônio, material e imaterial, é a palavra da última instância, aprovando e desaprovando. Ele faz como sempre fez: isola-se para ler e criar. Ela também faz como sempre fez: vive uma vida de simplicidade, família e trabalho. E nem a pescaria abandonou: segue sendo sua diversão preferida.

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