Entrevista

Humberto Campana: "Espedito Seleiro é tão sofisticado quanto Gucci e Fendi"

Irmãos Campana visitam a Fenneart e falam da importância da arte popular no design contemporâneo brasileiro

Bruno Albertim
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Bruno Albertim
Publicado em 05/07/2015 às 4:21
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Irmãos Campana visitam a Fenneart e falam da importância da arte popular no design contemporâneo brasileiro - FOTO: Divulgação
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Grife máxima do design brasileiro, os irmãos Humberto e Fernando Campana chegam terça-feira ao Recife para visitar a Fenearte. Sempre com uma agenda apertada, Humberto conseguiu conversar conosco depois de uma viagem a Sergipe, onde pesquisa o trabalho de bordadeiras. Nesta entrevista, um dos irmãos que revolucionaram o design recente brasileiro com o uso de materiais e objetos improváveis fala da coleção inspirada pelo artesão cearense Espedito Celeiro - "Tão sofisticado quanto a Gucci" e sobre velhos preconceitos que ainda estigmatizam a criação popular no Brasil.


JORNAL DO COMMERCIO - Na Coleção Cangaço, o design “erudito” parece encontrar continuidade em todos os parâmetros com o design popular, coletivo e tradicional do Nordeste executado com singularidade por Espedito Seleiro. Diante do trabalho dele, ainda faz sentido dividir a arte e o design entre culto e popular?
HUMBERTO CAMPANA –
Há dois anos, fiz uma visita a ele e gostei muito da sofisticação, da técnica. Grandes empresas italianas com peças de acabamento artesanal, como Fendi ou Gucci, têm a mesma qualidade técnica, o mesmo cuidado no acabamento. Além da sofisticação, ele tem liberdade, não tem medo de misturar cores. Fomos a Nova Olinda (Ceará) e, no início, foi meio tenso. Porque ele é um mestre, um patrimônio. E nós chegamos de um universo assim, digamos, paulistano, urbano. Quisemos liberdade total dele. Nós desenhamos as peças e mandamos para ele revestir.


JC - Uma a uma?
CAMPANA
– Sim, um processo muito lento. Nós fizemos os suportes das peças, a estrutura e pedimos para que ele revestisse. Algumas cadeiras têm 50 exemplares. Outras peças, apenas oito. O processo de finalização é muito lento.


JC – Ainda no século 16, o baiano Gregório de Matos dizia que o brasileiro estaria fadado a viver como um mazombo. Colonizado desde o útero, teria sempre vergonha do que lhe era nativo e pátrio. O fato de termos mais uma coleção assinada pelos irmãos Campana a partir de uma estética tradicionalmente popular do Nordeste indicaria que as elites brasileiras começam a abandonar a tal síndrome de Mazombo diagnosticada por Gregório?
CAMPANA –
  O diálogo entre o Hemisfério Norte e o Hemisfério Sul já se esgotou. Isso é uma forma também de fazer com que as pessoas tenham consciência do que é a arte brasileira. A arte, o novo, está aqui, no Sul. Os europeus têm uma curiosidade muito grande com o que se faz no Brasil hoje, com Havaianas, Melissa, a arte de Adriana Varejão, Vic Muniz. Fazer sucesso lá fora ajuda a nos valorizarmos aqui.

JC - Investir no que é regional, único, seria a forma de ter autoralidade reconhecida em nível mundial?
CAMPANA  -
Nos somos um país tropical e barroco, a festa mais popular é o Carnaval, as cores, a vibração. Se você anda numa rua no Recife, escuta sons, vê cores. Impossível negar isso e dizer que sou um minimalista, reto, preto e branco. Procuro traduzir tudo isso.


JC – Por que o artesanato e a arte popular brasileiros aparecem com mais força no trabalho do Estúdio Campana a partir dos anos 1990?
CAMPANA –
Desde o início, nosso trabalho já tem isso, mas de uma forma não tão radical. Isso vem desde a cadeira vermelha, de cordas, que era um retrato do caos criativo do Brasil. Não digo caos no sentido negativo, mas no sentido solar, de produzir uma cadeira sem tanto rigor, de evitar o colonialismo europeu do móvel. Fizemos até uma coleção chamada Desconfortável, na qual valorizamos o erro, o imperfeito, com materiais improvisados, gambiarras. É um olhar sobre o Brasil. Tenho esse olhar na rua. A coleção Pelúcia nasceu quando eu vi um rapaz vendendo um monte de bicho de pelúcia na cabeça. Estamos fazendo um trabalho mais consistente com ONGs, para pesquisar e usar tradições artesanais populares, fazer parcerias com cooperativas. Janete Costa e Aloisio Magalhães foram pioneiros. A Lina Bo Bardi foi uma das primeiras a olhar o Brasil com olhar sofisticado.


JC – Design e arte: o trabalho de vocês, se fosse possível escolher uma gaveta, estaria melhor etiquetado no estético ou no utilitário?
CAMPANA –
A gente é muito conhecido pela estética, como se não fôssemos funcionais. Mas quem conhece a fundo a nossa obra, se olhar os catálogos de várias coleções comerciais, sabe que fazemos coisas superconfortáveis, com todo o estudo de funcionalidade, de ergonomia. A própria coleção Cangaço une estética a funcionalidade, são peças fáceis de limpar.


JC – Como o senhor vê a popularização do design no Brasil?
HUMBERTO CAMPANA –
Curiosamente, um grande fator de popularização do design é a televisão. Nas novelas, as pessoas veem os apartamentos dos ricos, com grande uso de design, e passam a desejar também. De uns 15 anos para cá, com a globalização, a internet nas ruas, nas favelas, o Brasil mudou muito. Há 15 anos, não se viam antenas de TV no São Francisco. Hoje, ninguém precisa assinar uma Vogue, uma Domus, para ter informação. Os sites estão aí.


JC - Em seu último livro, o sociólogo francês Gilles Lipovetsky condensa o que se diz hoje sobre o capitalismo contemporâneo: tanto ou mais que necessidades, o mercado precisa vender desejos. A estética virou necessidade?
CAMPANA –
O design apenas como funcionalidade já cumpriu seu papel. Hoje, ele tem papéis a mais. Pode ser estético. Pode ser político, quando, por exemplo, se fazem móveis com materiais recicláveis, ou coisas que conectem com o afeto. Acho que o sonho é importante.


JC – O design é a materialização dessa busca pelo lúdico?
CAMPANA
– A ciência vai evoluindo, a informação vai se apliando. Exige-se mais criatividade, um olhar diferente sobre a mesma coisa. A cadeira foi inventada quando o homem talhou uma pedra – e aquilo já era design.

JC – Por que só agora a visita à Fenearte e qual a expectativa?
CAMPANA -
Já tinha ouvido falar, sei que é uma feira grande, uma das maiores, onde há muita arte popular e artesanato. Devo ver muitas coisas inspiradoras. Vai ser rápido, mas bom. Gosto muito do Recife, ia quando criança, um irmão morava aí, meus sobrinhos são pernambucanos. E sempre que chegava, os primeiros lugares que visitava eram o Mercado de São José e a Feira de Caruaru.

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