Cena Política

Adestramento de cães e reeleição. Explicando o caos brasileiro através dos petiscos

Há um método para adestrar cães que é dos mais populares, aquele que você faz com o uso de petiscos. E isso tem muito a ver com reeleição no Brasil.

Igor Maciel
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Igor Maciel
Publicado em 07/01/2022 às 14:29 | Atualizado em 13/01/2022 às 22:02
TÂNIA RÊGO/AGÊNCIA BRASIL
FHC foi presidente da República por dois mandatos, de 1994 a 2002 - FOTO: TÂNIA RÊGO/AGÊNCIA BRASIL
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Há um método para adestrar cães que é dos mais populares, aquele que você faz com o uso de petiscos. Basicamente, funciona assim: você dá um comando, aguarda que o canino em questão obedeça e, se fez correto, presenteia-se o "bom garoto" com algum biscoito. Também funciona com psicologia infantil. Se a criança tem um bom comportamento, obedece, ganha algo, como um brinquedo ou um doce.

Essa técnica, que tem infinitas possibilidades como alvo, é conhecida como "reforço positivo". A ideia é que seja possível retirar o incentivo, depois, mantendo o bom comportamento, porque você condiciona o sujeito.

O que isso tem a ver com política?

A reeleição é um elemento de reforço positivo, um bônus para gestores bonzinhos que fazem o que se espera deles. Na teoria, ao menos. Ela foi implantada no Brasil, em 1997, por um sujeito tão sagaz quanto ingênuo chamado Fernando Henrique Cardoso (PSDB).

O problema da ingenuidade é que ela se manifesta até nas pessoas muito inteligentes. Geralmente, mais em pessoas inteligentes.

Além de dar base para a sua própria reeleição, fazendo todos acreditarem que ele não era tão ingênuo assim, FHC gostava de pensar que era importante o gestor ter um espaço de oito anos para dar conta da infinidade de problemas que o país sempre enfrenta.

Continuidade é importante e a quebra do calendário em períodos de quatro anos, havendo a correta alternância de poder, faz com que ações precisem ser interrompidas e retomadas com uma frequência danosa ao país. É inteligente.

Papai Noel

O problema é que só faltou ao ex-presidente acreditar em Papai Noel para completar um trio de fantasias. Entre alternância de poder, condicionamento por reforço positivo para políticos e Papai Noel, o único que consegue sobreviver na cultura brasileira usa barba branca.

Fernando Henrique acreditava tanto em alternância de poder que, hoje se sabe, fez corpo mole na campanha de José Serra (PSDB), seu então ministro, por acreditar que era importante Lula (PT), seu adversário, ser presidente do Brasil. Só FHC pensou assim. O PT assumiu a presidência com um projeto de "20 anos no poder, no mínimo". Ficou 13 e só caiu por impeachment.

FHC acreditava que após o reforço positivo da reeleição, com mais tempo, as gestões iriam entregar resultados no segundo mandato. Descobriu cedo que não funciona assim no nosso sistema. Esqueceu algo essencial para o presidencialismo de coalizão em curso no Brasil há algumas décadas: ele só funciona através de compartilhamento de poder e expectativa de mais poder.

Para apoiar um governo de maneira quase irrestrita, os partidos precisam ter espaço na gestão, mas também precisam ter expectativa de verbas e cargos no futuro. Como a reeleição só pode ser aplicada uma vez, sem qualquer bônus para o futuro, os governos costumam perder apoio e se desestabilizar. Os partidos vão buscar o futuro em outro lugar.

Todos os mandatos de presidentes reeleitos na Nova República foram piores que os primeiros. FHC implodiu. Lula sobreviveu, apesar de o primeiro mandato ser lembrado até hoje como um período muito melhor do que o segundo. Dilma Rousseff (PT) era tão inapta para a função que o governo começou a definhar na metade do primeiro mandato. Ela ainda foi reeleita e sofreu o impeachment na sequência.

Remédios amargos

Como estamos falando de uma gestão pública num país absurdamente imenso, há problemas que precisam ser enfrentados e que, nem sempre, são exatamente o que o dono do biscoito, o eleitor, espera. É como se ao ouvir o comando para "dar a pata", o cachorro corresse para espantar um ladrão em cima do muro. Ele não atende o comando, fica sem o petisco, mas a atitude dele se mostra importante no longo prazo.

Cachorros agem assim? Talvez.

Políticos, certamente não.

Num primeiro mandato, com a expectativa de serem reeleitos, por qual motivo vão tomar atitudes que lhe façam perder votos? Para que dar remédios amargos, quando o eleitor quer adocicar a vida já sofrida? E se não for reeleito?

Sem reformas, não dará certo

No Brasil, nada acontecerá se não for por meio de reformas estruturais, geralmente remédios quase intragáveis. Só é possível modificar o sistema reformando ele. Não existe a menor possibilidade de o país se desenvolver de forma sustentável sem uma reforma Política ampla, para começar. Na sequência, uma reforma Administrativa radical precisa ser feita. Depois, uma reforma Tributária que diminua a carga de impostos, com uma estratégia que mantenha o Estado apenas como condutor da economia. Isso, repetindo, só para começar.

Se é tão simples, por que não avança?

Bom, uma reforma tributária diminui o poder dos grandes partidos e tira dinheiro dos fundos que os políticos recebem, além de reduzir a margem da União para conceder benefícios a setores da economia e para programas sociais usados como moeda de troca na eleição.

Já a reforma administrativa mexe com servidores públicos, os dos altos salários, e com sindicatos. Diminui também o espaço para concursos públicos, afetando uma cadeia de cursos para concursos e "concurseiros" (uma "profissão" brasileira).

E a reforma política, da maneira que precisa ser feita, impediria a reeleição da grande maioria dos políticos que, atualmente, estão com mandato. "Só" isso.

O problema de FHC foi não identificar que todo reforço positivo tem dois polos e há expectativas dos dois lados. As do eleitor, inclusive, são muito baixas. O brasileiro se satisfaz com bem pouco no curto prazo, sem problemas.

O cachorrinho político, no primeiro mandato, sabe disso e convence o dono com piruetas. No segundo mandato, quando o ladrão já saltou o muro, ele se esconde embaixo da cama.

Possivelmente, divide o espaço com o presidente da vez.

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