Bolsonaro cresceu no Nordeste e, sem isso, já poderia ter perdido a eleição
Se você levar em conta que a votação bolsonarista caiu em SP, MG e RJ, é falso dizer que o problema do atual presidente foi o Nordeste. A região foi a salvação dele.
Era por volta das 8h da manhã, na rua Amélia, zona norte do Recife. Um veículo avaliado em cerca de 150 mil reais seguia pela via com uma bandeira do Brasil, típica das que têm sido usadas para registrar apoio ao atual presidente. Em sentido contrário, um entregador de água mineral transitava pela ciclovia, montado em uma bicicleta avaliada em cerca de 600 reais. O motorista do carro buzinou e o entregador gritou: “é Bolsonaro!”.
Aconteceu três dias após a votação que levou Bolsonaro (PL) ao segundo turno. O encontro real e presenciado por este colunista, que estava no carro logo atrás, é ilustrativo de um movimento com o qual a opinião pública tem insistido em se fazer de surpresa, como se recusasse o crédito para o que lhes é esfregado no nariz.
Existe uma mudança de comportamento na sociedade, inclusive no Nordeste. É algo que está sendo ignorado e “assusta” desde 2018, como se fosse uma anomalia. Não é. Há números mostrando essa virada de chave mais consistente nos últimos quatro anos. As votações para o legislativo mostram que não são casos isolados. Aconteceu em todos os estados da região.
É verdade, por exemplo, que a votação de Lula (PT) no Nordeste aumentou desde 2006, na última vez em que havia sido candidato a presidente. Nesses 16 anos, o petista viu crescer sua votação na região em que tem mais apoio em 5,1 milhões de votos.
Já a oposição, no mesmo período, alcançou cerca de 2,3 milhões de votos a mais no Nordeste. A questão é que 60% do crescimento dessa oposição se deu apenas entre 2018 e 2022. Nos últimos quatro anos, a votação de Bolsonaro entre os nordestinos saiu de 7,4 milhões para 8,7 milhões de votos.
Se você levar em conta que a votação bolsonarista caiu em SP, MG e RJ, é falso dizer que o problema do atual presidente foi o Nordeste. A região foi a salvação dele.
Sem o crescimento obtido no reduto petista e sem, por exemplo, o crescimento de quase 400 mil votos que Bolsonaro teve no Pará, outro destaque no Norte, Lula teria vencido no primeiro turno.
Aconteceu antes
O movimento precisa ser observado com maior atenção, porque não é inédito. Essa chave do nordeste já virou em outro momento. Talvez os mais novos não se recordem, mas o Nordeste era dominado pelo PFL (que virou o DEM e virou União Brasil) e pelo MDB. Lula perdeu no Nordeste em todas as eleições que disputou de 1989 até 1998 (ver nos mapas abaixo).
O mesmo movimento que estamos vivendo agora foi vivido, no sentido inverso, entre a segunda metade da década de 1990 até o ano de 2002, quando Lula venceu na região e foi presidente pela primeira vez.
O fenômeno tem indícios muito parecidos. Naquela época, candidatos de esquerda foram, gradativamente, ganhando espaço nas bancadas de deputados federais e estaduais. Havia um cansaço com o modelo das gestões na época. Grandes caciques políticos começaram a concentrar tanto poder, ainda sobre resquícios do regime militar, que geravam divisões nos grupos e davam origem a novas lideranças.
Como o espaço da direita estava ocupado pelos caciques, esses novos nomes modulam o discurso e rumam à esquerda. Quando Lula venceu em 2002, o processo sofreu uma brutal aceleração e até gente reacionária virou à esquerda, falando em revolução e socialismo. O poder transforma.
Só o tempo, e o resultado final desta eleição atual, dirão se o voto do Nordeste vai mudar de novo a direção e em quanto tempo isso pode acontecer. Mas a lista com os deputados mais votados em Pernambuco, com bolsonaristas na Alepe e na bancada federal, dizem muito sobre isso.
No caso da Alepe, o mais votado, Alberto Feitosa (PL) chegou a ser secretário de gestões anteriores do PSB. Ainda antes de 2018, percebendo a onda que estava se formando, mudou o rumo e virou à direita. Em 2018, foi eleito com suficientes 43 mil votos. Em 2022, subiu a votação para 146 mil votos. Não dá para menosprezar.
Os quase 30% da votação alcançada por Gilson Machado (PL) para o Senado em Pernambuco é outro indício.
Não é um movimento que possa ser ignorado e deve ser respeitado, mesmo que não se concorde com ele.