Cena Política

O fim da fantasia de moralidade e a nudez como legado da Lava Jato

Confira a coluna Cena Política desta terça-feira (19)

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Cadastrado por

Igor Maciel

Publicado em 18/03/2024 às 20:00
Análise
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Por aquela praça, diariamente, centenas de pessoas passam apressadas, todos os dias, indo ao trabalho ou voltando para casa. São empresários, comerciantes, comerciários, advogados, médicos, jornalistas que quase se esbarram no trecho apertado mas necessário da cidade.

Em púlpitos espalhados pelo ambiente, homens públicos fazem seus discursos. Vestem-se com roupas finas, usam gravata da melhor qualidade, cobrem-se dos tecidos mais nobres que o dinheiro público pode comprar. Quase ninguém escuta esses políticos e o conteúdo de suas falas, mas são eles os responsáveis por colocar ordem àquele vai e vem que, mesmo caótico, sustenta a economia da cidade.

Um dia, um grupo de profissionais do sistema Judiciário resolveu olhar com mais atenção para esses políticos e deixá-los expostos.

Nudez

Operação por operação, foram arrancando aquelas vestimentas e exibindo a nudez desses agentes políticos aos passantes cada vez mais assombrados. A nudez constrange o nu em primeiro lugar e um reflexo natural nesses casos é desnudar os colegas próximos para não estar ali sozinho.

Dividir os olhares curiosos é uma urgência. Logo vieram as delações e, em pouco tempo, havia um grande grupo de pelados naquela praça. Tentavam esconder suas vergonhas da maneira que fosse possível.

Antes ninguém os ouvia, agora todos param para ver, xingar e atirar tomates maduros contra os corruptos.

Normalidade

Mas, o choque inicial da nudez é, aos poucos, substituído por uma normalidade bizarra naquela convivência. O nu que antes atraia atenção, torna-se ordinário quando explícito em excesso.

Quem entra numa praia nudista, por exemplo, diz que o estranhamento dura apenas poucos minutos. Como todos estão nus, rapidamente ninguém mais se constrange.

Logo, a nudez daquele grupo na praça deixou de chamar a atenção do público. Os profissionais do sistema judiciário, procuradores e juízes, empolgados com a atenção que receberam nos primeiros momentos, começam a ampliar o trabalho e tentar abastecer com novidades espetáculo. Estavam sendo tratados como heróis poderosos e necessitavam ter mais daquilo.

Os procuradores e juízes resolvem, então, ir além dos políticos e desnudam empresários, médicos, advogados e qualquer pessoa que estivesse passando pelo local.

Sistema

Quando não havia mais como ampliar o quadro, os procuradores e juízes tentaram desnudar até os colegas de Judiciário.

Criou-se um tipo de sistema social automático, no qual quem não apoiava a Operação Lava Jato, ficava nu também. Quem não os defendia “tinha algo a esconder” e deveria ser exposto.

Mas era um sistema aberto, que dependia da participação e apoio popular. É algo problemático.

Equívoco

A dificuldade dos sistemas abertos e dessa dependência popular é que eles são imprevisíveis e, depois de ativados, é quase impossível definir seu destino.

Acontece que, em determinado ponto, quando parecia não haver mais ninguém a desnudar, os próprios juízes e procuradores decidiram que agora seriam eles os políticos. Vestiram também seus ternos e suas gravatas de tecido nobre e foram aos púlpitos.

A aceitação era difícil. Eles ensinaram o público a relacionar aquelas plataformas à corrupção e resolveram subir nelas, eles próprios, depois. Foi um equívoco monumental.

Infantil

Na política e nas atividades sociais um erro estratégico quase infantil é criar um sistema que generaliza adjetivos de acordo com a função para depois tentar ocupar aquela mesma função. Você pode reclamar da conduta de um político, por exemplo, mas não pode defender que todos os políticos são corruptos se quiser, um dia, ser político também.

Com o tempo, aqueles profissionais do sistema Judiciário foram expostos pelo sistema que eles mesmos criaram, obrigados a ficar nus, e acabaram se juntando aos outros pelados da praça. Não exatamente por serem corruptos, mas porque alí ninguém podia ficar vestido. O sistema obrigava a ser assim.

Mensagens de conversas entre eles foram expostas e reclamar da invasão de privacidade era algo que os colocava em suspeita, porque não podia existir privacidade entre políticos. Os próprios procuradores e juízes da Lava Jato defenderam isso em determinado momento.

E terminaram "vítimas".

Bota em lei

A consequência de tanta nudez, para os dias de hoje, é que ninguém mais “esconde as vergonhas”. Não há qualquer constrangimento em estar nu. Aquela cena horrorosa é parte da paisagem.

Quer um exemplo? Se antes o pagamento de dinheiro a deputados era investigado dentro de um grande escândalo, como o Mensalão, atualmente os parlamentares recebem dinheiro por um dispositivo amparado por lei e conhecido como “emendas pix”, mas que já se chamou orçamento secreto.

Como todos ficaram nus, o que acontecia de forma velada agora está no orçamento. E ninguém reclama.

Guerra santa

Os procuradores e juízes, por erros estratégicos, nunca conseguiram acabar ou diminuir a corrupção no Brasil. O que eles fizeram, na verdade, foi desnudar, arrancar a fantasia de probidade, moral e decência que havia na política brasileira.

Ninguém pode dizer que isso não era necessário. A corrupção deve ser combatida sempre. A questão é que isso foi realizado pela Lava Jato como se fosse uma guerra santa e não com a sobriedade, a inteligência e a resiliência necessárias para algo tão delicado.

Quando, por fim, esses agentes do Judiciário decidiram entrar na política, a fantasia dos “heróis” foi ao chão também. A Força Tarefa acabou quando Sergio Moro aceitou ser Ministro da Justiça. Por melhores que fossem as intenções dele, ali foi o fim.

Castigo da nudez

Moacyr Scliar escreveu um conto sobre a nudez em 1998 para a Folha de São Paulo. Nele, o escritor gaúcho relata a história de um rapaz que tinha uma câmera com raio-x pela qual poderia ver a lingerie da vizinha embaixo da roupa.

Um dia, a vizinha resolveu tirar toda a roupa e mostrou-se completamente nua ao rapaz. Scliar segue: “Ele mirou-a. Consternado. O corpo que via ali, um apenas razoável corpo de mulher, em nada correspondia às suas expectativas. Preferiria mil vezes o que tinha visto com a ajuda da câmera. Foi embora e nunca mais voltou… É o castigo da nudez explícita que recusa o disfarce da fantasia.”

Sem escândalo

Quanto aos políticos brasileiros, após tanta exposição e tanto tempo sendo xingados e recebendo tomates, aprenderam uma lição cínica, mas útil, sobre a nudez: “se ninguém tiver vergonha, também não haverá escândalo”.

Infelizmente, é o legado da Lava Jato.

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