Cena Política

O psicólogo Nobel de Economia e a "saudade" de algumas mazelas brasileiras

Confira a coluna Cena Política deste domingo (31)

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Cadastrado por

Igor Maciel

Publicado em 30/03/2024 às 20:00
Análise
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O vencedor do prêmio Nobel de Economia de 2002 não era economista. Daniel Kahneman era psicólogo, considerado o pai da economia comportamental, e morreu na última quarta-feira (27), aos 90 anos.

E o que um psicólogo criador de teorias sobre economia faz com destaque na coluna de política? É que os estudos dele demonstram até que ponto as pessoas “abandonam a lógica e tiram conclusões precipitadas”. Ele formulou modelos que explicam isso.

Quer algo mais atual na política brasileira?

Smith

Para explicar a relação da teoria de Kahneman com a política brasileira, é preciso primeiro entender o conceito do Homo Economicus, baseado no livro de Adam Smith, considerado o pai da economia, no qual ele entendia que o egoísmo era o que movia os agentes econômicos.

“Não é da benevolência do açougueiro, do cervejeiro ou do padeiro que esperamos nosso jantar, mas de sua consideração pelos próprios interesses”, dizia Smith.

Smith x Marx

Já aqui, qualquer semelhança com a ideia que a esquerda brasileira tem sobre os empresários, os mercados financeiros, o Banco Central controlador dos juros e qualquer um que acumule riqueza (se não forem eles próprios), não é mera coincidência.

Nenhum deles admite isso facilmente, mas a imagem que a esquerda latino-americana usa em seus discursos para classificar qualquer tipo de riqueza como algo nocivo é mais baseada em Adam Smith do que em Karl Marx.

Errado

Kahneman, morto esta semana, provou que a ideia do Homo Economicus, movido pelo egoísmo em nome dos próprios interesses, não era verdade. O Nobel de Economia de 2002 comprovou que as tomadas de decisão acontecem em dois sistemas diferentes.

No “Sistema 1”, a mente age com velocidade, utiliza quase que exclusivamente a intuição e reage a repertórios emocionais, sem muita racionalidade. Depois, no “Sistema 2”, aquela reação é reavaliada com racionalidade e ação analítica, corrigindo os erros do “Sistema 1”.

Sistemas

O que diferencia as pessoas que têm sucesso ou não é a utilização desses dois sistemas em conjunto, não a ambição ou o egoísmo racional. A imensa maioria da população, segundo Kahneman, não consegue passar da primeira fase.

Ele comprovou em sua pesquisa que as pessoas confiam em atalhos intelectuais que levam muitas vezes às decisões equivocadas que vão contra seus próprios interesses. Essas decisões equivocadas ocorrem porque “os seres humanos são muito influenciados por eventos recentes. Eles são rápidos demais para tirar conclusões precipitadas em algumas condições e, em outras, são lentos demais para mudar”, explicava.

Política

Apesar de ter sido direcionada para a economia e ser muito utilizada no mercado financeiro, a descoberta de Kahneman encaixa perfeitamente nas decisões de ordem política, tanto dos governantes quanto dos eleitores que os habilitam a governar.

Ela também pode ser utilizada para demonstrar o risco das autocracias, das ditaduras e das monarquias absolutistas, porque sem qualquer controle externo, os donos do poder tomam decisões equivocadas, baseadas em vieses de cognição e repertório emocional, simplesmente por serem humanos.

Bolhas

No caso dos eleitores, explica até certo ponto as formações de bolhas ideológicas e os fanatismos que idolatram personagens públicos. Esses grupos não mudam de ideia com facilidade porque estão presos em um ciclo de confirmação entre os dois sistemas de Kahneman, meticulosamente guiados por pessoas interessadas e beneficiadas naquele equívoco coletivo.

“Verdade” guiada

Explicando melhor, todo mundo que viajou em excursão, com um guia apontando para onde você deve olhar, e tempos depois foi sozinho ao mesmo lugar, já teve a impressão de descobrir coisas novas e surpreendentes na segunda experiência.

Um conhecido fez certa vez uma viagem a um país africano em uma missão empresarial. O interesse do governo era mostrar ao mundo a estabilidade e o potencial para negócios do local. Fizeram visitas guiadas, ouviram agentes locais. Parecia tudo maravilhoso e promissor.

Numa noite, ao voltarem para o hotel, esse empresário pagou uma gorjeta maior ao guia, com a condição de que ele contasse se tudo aquilo mostrado durante o dia era verdade. O homem fez um relato de instabilidade política, pressão militar, perseguição contra instituições de controle que era de assustar.

Era uma bomba-relógio. Hoje esse país vive uma ditadura que reestatizou investimentos privados após sucessivas guerras civis.

Baseado na pesquisa de Kahneman, a visita guiada pelo governo da época era o “Sistema 1” e a conversa informal com o guia no lobby do hotel foi o “Sistema 2”.

Duplo engano guiado

O que acontece na política brasileira atualmente é que estamos tomando decisões no Sistema 1 que vão sendo falsamente confirmadas pelo Sistema 2 porque estamos sendo guiados e ludibriados em todo o percurso, até na hora de sermos racionais.

Voltando à analogia sobre o país africano, é como se o governo do país africano estivesse bancando a visita fantasiosa e, depois, ainda pagasse ou obrigasse o guia a, “em segredo”, seguir mentindo no papo informal posterior.

Fake News

No Brasil, as fake news divulgadas em grupos de Whatsapp são uma ferramenta poderosa para isso, porque você toma decisões equivocadas baseado em emoção e depois fica sendo bombardeado por “confirmações” daquilo que o levou a tomar aquela decisão.

Isso tudo ocorre dentro de um grupo com o qual você se identifica, o que confere credibilidade: “por que os meus colegas médicos estariam divulgando isso se não fosse verdade?”, ou “por que os meus amigos advogados estariam mandando isso, se não for real?”.

Longo percurso

A pessoa não se dá conta que aquele amigo de Whatsapp já recebeu aquilo de outro grupo, no qual ele também acha que pode confiar, que recebeu de outro grupo onde todos achavam que podiam confiar, isso quase infinitamente até chegar a uma origem duvidosa e interessada em propagar aquela mentira.

Se pensar bem, isso é puro suco de Brasil nos últimos anos.

O bom período péssimo

Ainda sobre Kahneman, para finalizar, o vencedor do Nobel também estudou a distorção psicológica entre o bem-estar “experimentado” e o bem-estar “lembrado”. Na prática é o seguinte: os humanos tendem a julgar uma experiência pela lembrança que guardam e não pela realidade daquela época.

Lar doce lar

Por exemplo, ao lembrar da época em que morou numa determinada casa, é possível que você tenha saudades porque seu filho nasceu lá, mas esqueça que estava endividado e quase foi à falência, que a casa tinha rachaduras, era fria e cheia de goteiras.

O fato de ter tido uma experiência memorável faz com que, em determinados momentos, você tenha vontade de reviver aquela época e morar no mesmo lugar outra vez, mas esqueça todo o resto.

Doce repressão

Outro exemplo, não se via muita notícia sobre violência urbana ou sobre corrupção na imprensa durante a ditadura e hoje é o que mais se vê.

A tendência é utilizar essa lembrança para defender que “se os militares estivessem no poder, não haveria violência e os políticos não roubariam”. Há quem chegue ao absurdo de ter “saudade daquela época”. Esquecem as crises sociais, a hiperinflação, a desigualdade, o analfabetismo e a miséria daquele período.

O sujeito esquece completamente também que numa ditadura as notícias sobre violência e corrupção eram censuradas, os escândalos e os roubos de dinheiro público aconteciam sem que ninguém denunciasse porque era proibido denunciar.

Viva Kahneman

É bom pontuar isso, já que estamos completando 60 anos do golpe militar de 1964. O bem-estar “experimentado” e o bem-estar “lembrado” daquela época podem ser muito diferentes.

Daniel Kahneman, com seus estudos dos anos 1970, nos ajuda a entender até essa falha em nossa cognição sobre a realidade brasileira. Vigiar nossos próprios pensamentos para entender nossos equívocos é importante e evita erros históricos maiores.

Que Kahneman descanse em paz.

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