Cena Política

A coerência de José Dirceu e o padroeiro dos políticos que foi degolado

Confira a coluna Cena Política desta quarta-feira (22)

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Cadastrado por

Igor Maciel

Publicado em 21/05/2024 às 20:00
Análise

Se você pudesse escolher somente uma opção, gostaria que o mundo fosse coerente ou honesto com você? Se tiver que responder rápido, talvez você escolha a honestidade. Mas, pense melhor.

A honestidade é dura e fria, mas a coerência acalenta. A honestidade é uma espada afiada, enquanto a coerência pode ser cobertor num dia frio e ventilador em dias quentes. A honestidade obriga e a coerência adapta.

Os santos escolheriam a honestidade, porque ela nos faz crescer e porque a coerência já não é, para eles, um desafio.

Os outros humanos, a maioria, escolherão a coerência porque é o que podem suportar por enquanto. O ideal é ter do mundo coerência e honestidade. Mas estamos longe disso ainda.

O que o ex-ministro condenado no Mensalão, José Dirceu, tem pedido ao Brasil nos últimos dias é coerência. E quem poderá dizer que ele não sabe o que está pedindo?

Coerência

O que Dirceu pede é para ficar livre das penas que recebeu e poder se candidatar a deputado federal ou senador em 2026. Quem conhece a ficha corrida de Zé Dirceu pode ficar revoltado. Mas, no Brasil atual existe algo mais comum do que um político sendo liberado de cumprir as leis para disputar uma eleição ou manter um cargo?

Convenhamos, ser coerente com essa realidade é apenas o que o intrépido petista, homem forte de Lula nos dois primeiros governos, anda pedindo sempre que há oportunidade.

O próprio Lula, aliás, foi liberado para ser candidato em 2022 baseado em condições parecidas com as que Dirceu argumenta.

Na praia

Estamos falando de um país em que sujeitos recentemente condenados a mais de 390 anos de cadeia, como Sérgio Cabral, costumam ser vistos fazendo exercícios matinais na praia, no Rio de Janeiro. E Dirceu, coitado, impedido de ser candidato.

Cadê a coerência?

Os santos e os ingênuos

Agora, a honestidade é a preferência dos santos, como já foi dito no início deste texto, mas também pode ser o engano dos ingênuos e dos boçais que se acreditam santos, mesmo atolados em hipocrisia.

Observemos o ex-juiz Sergio Moro (UB). O senador fez de tudo para não perder o mandato, apelou para a lei, tentou mostrar que não havia cometido qualquer tipo de irregularidade nas eleições, chegou a se humilhar indo aguentar as reprimendas do ministro Gilmar Mendes, do STF, em busca de solidariedade.

Foi tudo em vão. Continuava sendo chamado nos corredores do Senado Federal de “ex-senador em exercício”. Moro estava cassado antes mesmo de ser julgado.

Dentro do jogo

Aí ele desistiu de se explicar, buscando honestidade na interpretação das leis que nem ele entende direito, e resolveu apelar para a coerência. Moro teve uma conversa de pé de ouvido com o presidente do Senado Rodrigo Pacheco (PSD), garantiu a ele apoio em algumas votações, e fez chegar aos ouvidos de Lula que se caísse, poderia apoiar a própria esposa ou a esposa do ex-presidente, Michelle Bolsonaro (PL), para o seu lugar na Casa Alta.

Resolveu tudo. Sergio Moro deve ficar com o mandato e as opiniões jurídicas sobre o caso dele sofreram uma transformação. Todo mundo, agora, "já sabe que ele vai escapar no fim".

Moro foi ingênuo acreditando que poderia resolver tudo, no mundo da política, atuando como se fosse santo. Não funciona assim e ele resolveu ser coerente com o ambiente no qual estava.

Tentando

A coerência, senhoras e senhores, funciona de acordo com a realidade do local em que se está inserido.

Quando você fala de economizar dinheiro público num governo do PT, está tentando ser honesto com o contribuinte, mas incoerente com o partido, o governo e os colegas. Por isso Fernando Haddad (PT) é tão atacado pelos correligionários.

Mas a honestidade do ministro não é desinteressada, não é pura e nem santa. Ele tem interesses.

O conflito entre honestidade e coerência, no caso de Haddad se dá porque, ao perceber que pode se prejudicar politicamente, ele recua e surge, rendido, com alguma receita para arrecadar mais impostos, agradando o partido em nome de sobrevivência pessoal. Não é coisa que um santo faria.

Como eles conseguem?

Ser honesto e coerente ao mesmo tempo, na política brasileira, é impossível se o sujeito quiser ter sucesso e o ministro da Fazenda sabe disso. Como os santos conseguem, então, construir sobre coerência inabalável um caminho de honestidade?

Acontece que isso só é possível quando a honestidade é despropositada e a vontade de mudar a realidade resiste a qualquer pressão.

Políticos santos

A política brasileira, com suas verbas de gabinete, emendas, e rendimentos altos não é um ambiente de sacrifícios, mas de hipocrisia disfarçada como honestidade. Por isso é difícil encontrar políticos por aí que viraram santos.

Por isso existe coerência quando alguém como José Dirceu pede para ter seus processos anulados porque precisa ser deputado federal outra vez e ainda justifica isso como "justiça".

Olhando a história recente, quem vai dizer que não?

São Thomas More

Há santos que já foram políticos, sim. O padroeiro católico dos políticos, aliás, tem uma história que se encaixa ao tema deste texto.

São Thomas More nasceu em 1478, na Inglaterra, foi o principal articulador político de Henrique VIII e uma figura notável da dinastia Tudor, com poder semelhante ao que teria, dentro de um governo civil republicano, um ministro da Casa Civil, um José Dirceu da época, num regime absolutista.

Exemplo

Por ser honesto com o que acreditava, More se opôs ao rompimento do rei com a Igreja Católica, durante o período que culminou na criação da Igreja Anglicana.

Sua honestidade, aliada a uma coerência que não se abalou nem com as ameaças de morte que recebeu do reino após ser demitido, são um exemplo de como se pode ser honesto e coerente no mundo da política.

Virou santo, é padroeiro e serve de guia para todos os políticos que quiserem seguir seus passos.

Difícil é alguém querer.

Quem topa?

O problema é que Thomas More, incorruptível, foi degolado sob a espada de um carrasco, por ordem do rei Henrique VIII, em 1535. Ele só foi canonizado 400 anos depois, em 1935 pelo Papa Pio XI.

Vamos falar a verdade: os políticos brasileiros não aguentam esperar quatro anos, entre uma eleição e outra. Imagine manter suas convicções, ser defenestrado por elas, e ainda esperar quatro séculos para virar santo.

É mais fácil liberar José Dirceu.

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