Balões, lixo , música pop coreana e a liberdade de expressão no Brasil
Confira a coluna Cena Política deste domingo (2)
O noticiário mostra que moradores da Coreia do Sul estão sendo “atacados” por balões enviados pela Coreia do Norte. Os artefatos, já são cerca de 250, chegam carregados de lixo e fezes.
A informação é de que a carga de dejetos seria uma resposta, um contra-ataque, porque ativistas sul-coreanos estavam mandando balões para o norte, carregados com pen-drives de músicas K-Pop e novelas locais conhecidas como Doramas.
Taí uma boa lição sobre liberdade de expressão.
Lixo é expressão?
Outra informação importante sobre o caso é que a Justiça sul-coreana já havia proibido os cidadãos de enviarem balões com música e vídeo. A proibição foi derrubada pouco tempo depois pela suprema corte de lá. A justificativa: “enviar balões para outro país é liberdade de expressão”.
Será que os juízes continuam acreditando que mandar balões carregados para outros países é liberdade de expressão quando não são músicas, mas lixo e fezes que chegam?
E agora, quem define qual lixo é aceitável no âmbito da liberdade de expressão?
Limites
O episódio esdrúxulo da tensão coreana nos traz algumas lições, num momento em que se discute tanto os limites da liberdade e alguns chegam a defender que, para a liberdade, não pode haver limites.
Liberdade ilimitada é uma cretinice intelectual. Os coreanos do norte, por acaso, estão desculpados já que exerceram a liberdade de expressão deles? Liberdade é um conceito universal ou só vale para elementos com os quais concordamos?
As leis
Nada contra os Doramas ou o K-Pop. Certamente eles são um pouco menos agressivos aos sentidos do que o conteúdo dos balões da Coreia do Norte. Mas, vai aqui uma provocação, se o mundo todo concorda com isso, menos os norte coreanos, eles são obrigados a aguentar, já que são minoria?
Há uma ideia equivocada sobre as leis e para quem elas são feitas. A noção superficial que as pessoas têm da democracia faz com que elas acreditem que o sistema de leis é feito para atender as maiorias. Bolsonaro, quando era presidente, chegou a falar disso, afirmando que as leis eram para proteger as maiorias e colocar as minorias “na linha”.
Está errado.
Escravidão
O sistema democrático de direito atende a todos, mas seu ponto de partida são os direitos individuais, antes de seguir para o coletivo. Se as leis existissem para atender as maiorias, nada impediria, por exemplo, que 51% da população escravizasse os 49% restantes.
Mas, mesmo que 99% dos habitantes do Brasil se unissem para escravizar o outro 1%, isso não seria possível por causa das leis que protegem cada pessoa, por causa do direito individual de não ser escravizado.
Alguém
Essa confusão entre a maioria e a minoria existe porque as leis se “popularizam” sempre como limitação ou como permissão geral, mas nem todo mundo vai ao texto para observar o caráter individual de seu foco.
Por exemplo, as pessoas sabem que a escravidão é proibida no Brasil. Mas o que é proibido, literalmente, não é “a escravidão” no artigo 149 do Código Penal. O texto diz que é proibido “Reduzir alguém à condição análoga à de escravo”, sempre no individual, alguém.
É claro que isso atende o coletivo. Se não é permitido escravizar uma pessoa, também não é permitido, logicamente, escravizar cem mil. Mas o ponto de partida da proteção é individual.
Liberdade
E o que isso tem a ver com liberdade de expressão? Significa que mesmo a Coreia do Norte sendo uma minoria, eles não podem ser obrigados a receber e aceitar balões sul-coreanos recheados com esses materiais só por causa da liberdade de expressão dos vizinhos.
Mas o episódio é também uma demonstração inequívoca, por outro lado, do que acontece quando não se tem qualquer liberdade de expressão numa sociedade como a norte coreana, na qual as minorias são eliminadas. Elas recebem música e cinema, mas retribuem com lixo e fezes, talvez porque é o que há.
Quem define
Liberdade não pode ser ilimitada, e defender isso é cretinice. Por outro lado, limitá-la ao ponto de eliminar direitos individuais é uma agressão séria e desumana. As leis precisam definir a fronteira entre a liberdade e a agressão, mas não podem ser aplicadas por indivíduos ou grupos de indivíduos que utilizem isso para angariar poder político e financeiro, como tem acontecido.
De ambos os lados da polarização brasileira, por exemplo, é difícil separar o que é palavra e o que é lixo. Mas o que é palavra e o que é lixo e quem define isso? É Alexandre de Moraes? O STF? A imprensa? O Ministério da Justiça? A igreja Católica ou a Evangélica? É Deus?
Interesse
O que existe em toda essa discussão é uma descaracterização da liberdade de expressão para atender mais a anseios políticos e de poder financeiro do que ao bem estar da sociedade.
Por isso, cultura e lixo se misturam e se confundem tanto na concepção de todos esses indivíduos citados acima e de outros atores da República, dependendo dos interesses envolvidos.
Solução
Nas coreias há duas populações regidas por limitações legais diferentes. Uma com direitos civis e outra não. Uma com liberdade e outra não. São dois governos e dois regramentos constitucionais diferentes. É mais difícil.
Em países como o Brasil, divididos ideologicamente, mas com todo o povo sob a mesma lei e, teoricamente, sob a mesma liberdade, deveria ser mais fácil resolver.
A dúvida é: a lei e a liberdade no Brasil têm sido um instrumento coletivo ou também está dividida em coreias?