Cena Política

Os 30 anos do Real e a história econômica mais política do país

O Plano Real é a quilha do veleiro, a parte submersa que faz o contrapeso com o mastro e dá estabilidade à embarcação mesmo em grandes tempestades.

Publicado em 29/06/2024 às 20:00
Análise

A primeira atitude a ser tomada quando se chega ao fundo do poço é parar de cavar. Quando se chega ao fim do percurso de uma derrocada, emparedado e com uma única luz no topo da cabeça, pisa-se nas próprias tragédias e qualquer movimento vai nos levar para cima. Mas é preciso coragem.

Quem olhasse o Brasil no fim dos anos 1980 e começo dos anos 1990, com uma inflação mensal que chegou a 82,3% e um índice anual que alcançou mais de 2000% (parece erro de digitação, mas é dois mil mesmo) ficaria abismado.

Agora, imagine você que as pessoas, dentro de uma sociedade, não vivem um dia, um mês ou um ano, elas percorrem vidas inteiras, décadas com essa rotina de desvalorização frequente de tudo o que conquistavam. Entre 1980 e 1994, quando o Real foi implantado, o índice acumulado de inflação foi de 13.342.346.717.671,70%. Se você ficou curioso, para não precisar contar, o percentual acima está na casa dos trilhões. Isso significou um dia-a-dia perpétuo de salários defasados, preços subindo várias vezes ao longo de um único dia e um impulso na desigualdade brasileira que alargou a miséria num país já miserável.

Sabe quais as duas maiores dificuldades que o sujeito encontra quando está no fundo do poço? Entender que realmente está no buraco e, a mais difícil, livrar-se dos que lucram politicamente com aquela profundidade negativa. É por isso que dois presidentes tentaram resolver a situação e falharam.

José Sarney lançou três planos econômicos conhecidos como Cruzado, Bresser e Verão, mas que poderiam ser chamados todos de “Voo de galinha”, em suas versões 1, 2 e 3.

Depois, primeiro presidente eleito após a redemocratização, Collor aliou uma visão moderna de abertura econômica com um discurso de intenção liberal. Mas, na prática, lançou dois planos que não resolveram nada. Com o primeiro confiscou poupanças, mostrando que ainda havia como cavar o fundo do poço. Com o segundo, repetiu medidas de Sarney que já não haviam dado certo antes.

Mas foi no governo Collor que o Brasil descobriu o que era mais importante na democracia e o que realmente poderia trazer mudanças ao país. Não era a possibilidade de votar e escolher um presidente, mas de derrubá-lo com um processo legítimo e constitucional. Em 1992 com Collor e em 2016 com Dilma Rousseff, o impeachment fez pelo Brasil o que muitas eleições nunca conseguiram. Mas isso é assunto para outro texto.

O fato é que a queda de Collor nos deu Itamar Franco. O mineiro Itamar era uma figura inóspita de carisma, sem traquejo popular, porém tinha o mais importante que um presidente pode ter em momentos de crise: a vantagem do desprezo.

Ninguém esperava nada de Itamar, ninguém cobrava Itamar por nada. Ele não tinha feito nenhuma promessa aos eleitores. Ser vice de Fernando Collor, naquela época, era como uma lanterna tentando ser notada ao lado de uma estrela no ápice de sua luminosidade. Ao assumir, após o impeachment, ninguém esperava que a lanterna conduzisse o caminho do país. Aí ele teve liberdade para fazer o que bem entendesse.

Um sociólogo na economia

Quando Fernando Henrique Cardoso (PSDB), conhecido como o príncipe dos sociólogos, foi chamado para ser ministro da Fazenda, estava na missão de convencer o mundo sobre o Brasil ainda ser o país do futuro. Fazia sete meses que assumira o cargo de ministro das Relações Exteriores, tomava um vinho na casa de um amigo em Nova Iorque, no retorno de uma viagem péssima ao Japão na qual ouvira reclamações de investidores sobre o país.

O telefone tocou e ele foi chamado a atender numa sala ali perto. Do outro lado da linha, Itamar Franco, seu chefe, dizia que estava pensando em nomeá-lo ministro da Fazenda. Foi naquele ano que a inflação chegou a mais de 2000%.

Itamar era um sujeito cheio de manias e soluções pouco convencionais. Exótico, muitas vezes. Naquela ligação, Fernando Henrique diz, no livro “O improvável presidente do Brasil”, ter deixado claro que não queria e recusou a proposta. “Não quero o cargo”, foi a frase.

Itamar pareceu entender, disse que se precisasse ligaria outra vez ainda naquela noite e desligou o telefone. FHC ficou apreensivo, os amigos à mesa notaram que ele estava preocupado. Até que uma secretária apareceu outra vez na sala e disse que o presidente mandou avisar que não precisava mais falar com ele. “Ainda bem. Ele deve ter resolvido por lá”, pensou.

O jantar continuou, Fernando Henrique foi dormir e acordou no dia seguinte, provavelmente com uma ressaca daquelas e o telefone tocando. Era um repórter, querendo saber quais os planos dele como ministro da Fazenda. Atordoado, o tucano começou a receber muitas ligações e não entendia nada. A própria esposa, Ruth Cardoso, ligou magoada querendo saber porque ele tinha aceitado aquele cargo sem falar com ela antes. Que maluquice era aquela?

Até que seu auxiliar no ministério das Relações Exteriores ligou e confirmou que a nomeação já estava até no Diário Oficial. “Meu Deus. Estou arruinado”, foi a reação de FHC. Ligou para a residência de Itamar e escutou a secretária dizer que ele estava tomando banho. Esperou uma eternidade até que ele chegasse ao telefone.

Provavelmente ainda de toalha, o presidente da República confirmou como se falasse dos ovos que comeu no café: “Tomei a liberdade de nomear você. A repercussão está excelente”. O novo ministro, nomeado ministro da economia sem ser economista, fez a pergunta que qualquer recém contratado faz sobre o que o chefe espera dele: “Mas Itamar, o que é que eu vou fazer agora?”. A resposta veio no tom natural para um presidente que carrega a tal vantagem do desprezo: “Faça o que quiser, contrate quem quiser, demita quem quiser. Mas é bom resolver esse problema da inflação aí. Desejo-lhe sorte”. E desligou, provavelmente porque precisava ir vestir uma roupa.

Deve ter sido uma das contratações mais estranhas da Nova República, mas o fato é que deu certo. Itamar era o exótico necessário, porque o Brasil havia chegado ao fundo do poço fazendo o que todo mundo faria. Para sair dele, era preciso alguém que pensasse fora da caixa ou, no caso de Itamar, que não estivesse disposto a pensar muito. Só assim o Plano Real deu certo, gestado por uma equipe que Fernando Henrique formou, trabalhando escondida dentro de um bunker.

Uma estabilidade puxa a outra

Quando se está no fundo do poço, a primeira atitude é parar de cavar e, depois, qualquer movimento o empurra para cima. Itamar permitiu que o Brasil parasse de cavar e o Plano Real construiu o presidente da República seguinte: Fernando Henrique Cardoso, aquele que quase não foi.

O Real, aliás, construiu ou deu bases a toda a política brasileira desde então. É impossível falar de estabilidade política no país, hoje, sem citar a economia. Em momentos de crise constante a tendência do ser humano é olhar para o passado querendo voltar ou olhar para um futuro querendo quebrar tudo. Os primeiros são os reacionários e os segundos são os revolucionários. Ambos estão fugindo da realidade, ambos estão equivocados e ampliam a crise ao invés de resolvê-las.

A verdade é que, antes do Plano Real, ninguém queria viver no presente. Porque o presente era abusivo e cruel. O Brasil era dividido em polos que queriam voltar para a ditadura de direita ou criar uma revolução de esquerda. Dois grupos de equivocados, é verdade, mas ser equivocado era compreensível num ambiente com inflação de 80% ao mês.

Se hoje ainda é possível chamar os brasileiros à realidade, quando as polarizações políticas e ideológicas crescem e os equivocados de ontem voltam a se engalfinhar, é porque há algo mais importante do que as posições políticas para o país: estabilidade econômica. E esta só veio com o Plano Real.

O "Rolex do Paraguai"

Nem sempre o Plano Real teve essa aceitação universal como apaziguador e ponto comum da política brasileira. É preciso lembrar que a instabilidade e as crises econômicas sempre têm seus sócios. Nos anos 1970, muito antes de ser nomeado, sem querer, ao ministério da Fazenda, o sociólogo Fernando Henrique Cardoso tinha um amigo, com quem eventualmente discutia o país, falava de política, sindicatos e talvez até tomasse uma cervejinha de vez em quando. Era um tal de Luiz Inácio da Silva, que depois incorporou o apelido ao nome e virou Lula oficialmente.

FHC também tinha um apelido que não vinha das suas iniciais e era como Lula o chamava: “professor”. Lula e o "professor" foram companheiros, estavam juntos na greve dos metalúrgicos e em vitórias contra a ditadura naquela época. Mas, na redemocratização, o professor seguiu seu caminho pela moderação política, chegando ao Senado, e Lula resolveu continuar militando em seu campo mais revolucionário, sonhando em ser presidente.

Os dois queriam mudar o país atuando contra a desigualdade social. Mas um jogava o jogo para vencer pelo entendimento, enquanto o outro queria chutar a mesa sempre que as cartas não estavam boas em suas mãos. Para quem prega uma revolução, os reacionários parecem inimigos, mas os verdadeiros inimigos são os aliados moderados. E este era o caso de Fernando Henrique.

O problema dos conservadores moderados, do hoje chamado Centro Democrático, é que eles também querem as mesmas mudanças, igual a você, embora com mais responsabilidade e num tempo maior através de reformas graduais. Estes são os seus verdadeiros concorrentes se você está na esquerda ou na direita.

Foi por isso que, em 1994, quando Fernando Henrique Cardoso anunciou o Plano Real, Lula ficou furioso e colocou-se como opositor. Sim, Lula foi contra a nova moeda e, pré-candidato favorito às eleições daquele ano após uma derrota por pouco em 1989, fez discursos inflamados contra as medidas.

“Esse plano de estabilização não tem nenhuma novidade em relação aos anteriores. Suas medidas refletem as orientações do FMI”, reclamava o líder dos metalúrgicos. “O fato é que os trabalhadores terão perdas salariais de no mínimo 30%. Ainda não há clima, hoje, para uma greve geral, mas, quando os trabalhadores perceberem que estão perdendo com o plano, aí sim haverá condições”, dizia Lula.

Ele era respaldado por economistas e outras figuras de seu convívio dentro do PT. “Existem alternativas mais eficientes de combate à inflação. É fácil perceber por que essa estratégia neoliberal de controle da inflação, além de ser burra e ineficiente, é socialmente perversa”, dizia Guido Mantega.

“O Plano Real é como um relógio Rolex, destes que se compra no Paraguai e têm corda para um dia só. A corda poderá durar até o dia 3 de outubro, data do primeiro turno das eleições, ou talvez, se houver segundo turno, até novembro”, dizia Marco Aurélio Garcia.

Os resultados foram diferentes do que se imaginava entre os petistas e o Plano Real estabilizou a economia. Fernando Henrique foi candidato e venceu Lula em 1994.

Em 1998, mesmo reconhecendo que a estabilidade havia durado mais do que ele imaginava, Lula ainda dobrou a aposta e colocou suas fichas no caos: "Mas só temos uma estabilização monetária, sem nenhuma estrutura social e com a economia fortemente vulnerável. Os pilares da estabilidade são o câmbio e os juros. Mas não temos política industrial, política social. A dependência do mercado internacional é tanta que, toda vez que o banco central americano se reúne, os economistas do governo ficam com dor de barriga, de medo de um aumento de zero alguma coisa por cento nos juros americanos".

Só quando estava mais perto da eleição de 1998, percebendo que não teria como seguir reclamando de algo que vinha mantendo o poder de compra da população, Lula recuou e tentou convencer a CUT durante um encontro no qual discursou: "Se o PT se apresentar dizendo que é contra a estabilidade, qualquer candidato vai quebrar a cara, porque o povo e todos nós somos favoráveis à estabilidade".

Os aliados também perceberam que Lula havia mudado sua postura. "Ele ficou mais pragmático e menos ideológico. Quase não fala mais em socialismo ou luta de classes. Já descobriu que qualquer mudança tem que ser lenta e que medidas sociais contundentes têm que ser tomadas sem colocar a oligarquia como o inimigo, embora mantendo um compromisso visceral com os excluídos, com a idéia de que é fundamental que todo brasileiro tenha direito a, pelo menos, um prato de comida por dia", disse Frei Beto, numa entrevista à Folha de São Paulo.

Mas já era tarde para aquele pleito e Fernando Henrique foi reeleito porque o PT estava carimbado como um opositor do Plano Real. Continuar era ruim, reconhecer o erro também. E veio mais uma derrota.

Atestado de vitória da estabilidade

Lula só chegou à presidência em 2002, quando consolidou seu respeito recém adquirido pela estabilidade econômica com a famosa “Carta aos Brasileiros”. A carta, mais do que um documento de compromisso, é um atestado de um evento singular. É o dia em que um plano econômico e uma moeda venceram o discurso pseudo-revolucionário de uma esquerda que estava acostumada a chutar mesas porque não sabia jogar o jogo que se desenrolava ali. A lógica e a moderação venceram o caos.

O capítulo derradeiro desses primeiros trinta anos, de consolidação da força do Real, poderia ser representado pela imagem de poucos dias atrás, quando o atual presidente Lula da Silva foi visitar o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso. Os dois se olharam, apertaram as mãos e posaram para uma foto.

Não são amigos de novo como eram antes. Fernando Henrique foi injustamente atacado e transformado em inimigo apenas porque o PT precisava ter um adversário para sustentar-se politicamente. Lula e o PT foram mesquinhos com FHC ao longo dos anos e uma foto não transforma o passado.

Mas a foto, assim como o apoio que FHC deu ao atual presidente na eleição de 2022, mostram o tamanho da importância do Plano Real para a concertação política.

Quilha de veleiro

O ambiente de estabilidade política, ao contrário do que se deve imaginar, não é um mar calmo como se fosse um espelho de água ausente de ondas. Numa sociedade igual à brasileira, com interesses privados e públicos se engalfinhando, desigualdade ainda muito presente e crises institucionais causadas até por futebol, esperar mar calmo é uma ilusão merecedora de sanatório.

O Plano Real é a quilha do veleiro, aquela parte submersa que faz o contrapeso com o mastro e dá estabilidade à embarcação mesmo em grandes tempestades. É graças ao ambiente econômico do Plano Real que o país pode enfrentar suas turbulências na política há 30 anos.

Por isso, independente do presidente sentado na cadeira ou apeado dela pelos dispositivos constitucionais. Independente de ele ser de direita, de esquerda, de Marte ou de Júpiter, importa ao Brasil que esse degrau da responsabilidade com a economia e a estabilidade, alcançado em 1994, nunca mais seja questionado, sob o risco de cairmos de volta ao fundo do poço.

É necessário estar vigilante todos os dias contra aqueles que não conseguindo alcançar suas pretensões pessoais, tentam desestabilizar a economia do país. O Plano Real deve ser preservado, o Brasil deve ser protegido da inflação descontrolada todos os dias. E que mais 30 anos venham por aí, independente do grupo político que estiver ao leme.

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