Como o texto da PF se reforça pela natureza do governo Bolsonaro

Os relatos daquele finzinho de 2022, no documento da PF, encaixam com o ambiente público do Planalto que se acompanhou à época, entre outras coisas.

Publicado em 21/11/2024 às 20:46 | Atualizado em 21/11/2024 às 20:47
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Em 7 de outubro de 2020, Jair Bolsonaro (PL) deu uma declaração daquelas que entram para a História e depois voltam fazendo cobranças.

"Eu desconheço um lobby para criar dificuldade para vender facilidade. Não existe. É um orgulho, é uma satisfação que eu tenho, dizer a essa imprensa maravilhosa que eu não quero acabar com a Lava Jato. Eu acabei com a Lava Jato, porque não tem mais corrupção no governo. Eu sei que isso não é virtude, é obrigação”, afirmava.

Dificuldade x Facilidade

Na época, é bom lembrar, o governo estava aos frangalhos por causa da pandemia e o então presidente havia feito um acordo com o centrão para sobreviver. Praticamente entregou o comando da gestão para figuras como Ciro Nogueira (PP) e Arthur Lira (PP). Fazia parte do acordo inviabilizar a Lava Jato para facilitar a vida de políticos aliados aos dois, investigados pela força-tarefa.

Mas o que chama a atenção para o momento atual, em que ele terminou sendo indiciado pela Polícia Federal junto com outras 36 pessoas, podendo pegar até 28 anos de cadeia, é a primeira parte dessa declaração acima, quando diz desconhecer, dentro de seu governo, “lobby com o objetivo de criar dificuldade para vender facilidade”.

Relembrando

É preciso lembrar: o grupo que o cercava era proeminente em criar dificuldades muito mais por imperícia, negligência e imprudência do que por negociação política ou corrupção.

E há dois problemas sérios nessa fama do governo Bolsonaro. Primeiro é que quando a dificuldade era criada de propósito, por mais vil que isso fosse, ao menos existia um preço financeiro ou político a se pagar para que a solução aparecesse.

No caso dos bolsonaristas as crises não tinham solução, porque eram fruto da inabilidade, da covardia e da visão de mundo estreita dos participantes.

O relatório

O segundo problema é que imperícia, negligência e imprudência são a base sistemática que origina o crime culposo e, em algumas situações, até o dolo eventual. E aí é que o relatório da Polícia Federal com o indiciamento dos bolsonaristas, inclusive no episódio do planejamento de assassinatos, ganha substância em seu ponto de partida.

Porque em seu conteúdo há episódios que denotam imperícia, negligência e imprudência, algo que ali já era comum e identificamos facilmente. O documento da PF parte de um defeito conhecido daquela aglomeração que se chamou de governo por quatro anos.

Isso acaba reforçando o que vem em seguida, os crimes mais pesados, quando a imprudência, a negligência e a imperícia se transformaram em ação direta de influência e comando para manter o grupo no poder, à revelia da lei e até cometer assassinatos.

Encaixam

Os relatos daqueles meses de novembro e dezembro de 2022 contidos no documento da PF encaixam com o ambiente público do Planalto que se acompanhou à época. Bolsonaro isolado, depois recebendo somente alguns assessores, principalmente militares, evitando desmobilizar acampamentos nos quartéis, enquanto se ouvia, o tempo todo, que a cúpula do Exército estava sendo pressionada a “tomar uma atitude”.

Era tudo especulação, até o indiciamento deste 21 de novembro de 2024, quando os detalhes vêm à tona com registros de interceptações telefônicas, planilhas e até a comprovação de que parte do plano para assassinar Lula (PT), Alckmin (PSB) e Alexandre de Moraes foi impressa no Palácio do Planalto, num dia e horário em que o presidente estava em seu gabinete.

Difícil

Bolsonaro é um oportunista covarde com bom papo, do tipo que incentiva todos na sala com suas ideias mais bizarras e depois, sem ter precisado colocar a mão na massa, é capaz de dizer que nunca viu as pessoas que estavam ali, nunca fez nada e nem mandou fazer, mas que “falar não é crime”.

Em último caso, alguém querendo defender o ex-presidente pode até dizer que ele era “tão amado” ao ponto de cometerem crimes por ele sem que ele tivesse qualquer participação. Seria uma forma de atenuar sua responsabilidade.

Na lei francesa há um dispositivo utilizado para punir líderes de seitas que induzem crimes sem tê-los praticado diretamente, apenas pela influência. Chama-se "abuso fraudulento do estado de ignorância ou vulnerabilidade". No Brasil existe legislação parecida, principalmente relacionada a golpes contra idosos, por exemplo. Mas, não é o caso.

Não tem ignorante

O problema aqui é, no caso dos que planejaram um golpe e agiram para isso, alegar alguma ignorância.

É que na lista dos indiciados não tem gente ignorante. Dá pra encher um ônibus com imbecis motivados, sim, mas nenhum deles é ignorante. Tem um ex-presidente (capitão do Exército), sete generais, um almirante, outros 16 oficiais militares, dois advogados, um delegado e dois agentes da Polícia Federal, um engenheiro, dois empresários, dois assessores da presidência, um presidente de partido e até um padre.

Vem mais?

Dizer que Bolsonaro falou de forma genérica e que eles, por ignorância, entenderam errado e cometeram os crimes é atentar contra a inteligência alheia. O que já deveria ser outro crime.

Pessoas assim só agem quando a figura com o maior poder na sala dá uma ordem. E a pessoa com o maior poder, nessa sala, era o então presidente da República. Em que momento essa ordem foi dada ou o formato dessa ordem é algo que talvez o julgamento possa esclarecer.

Ou o depoimento do tenente-coronel Mauro Cid, o ajudante de ordens do então presidente, pode explicar. É bom lembrar que Cid, prestes a perder o benefício da delação premiada que fez, prestou novos esclarecimentos no mesmo dia em que o indiciamento saiu. Ninguém sabe o que ele disse a mais. O fato é que a delação não foi anulada e ele seguiu “livre”.

Já vimos o filme

Nos próximos meses, todos iremos ouvir muito a mesma ladainha de anos atrás, quando Lula (PT) foi condenado e preso e os apoiadores repetiam que “não tinha nenhuma assinatura dele em sítio e nem em apartamento”. Como se alguém que está cometendo um crime e recebendo um imóvel como propina fosse ao cartório assinar uma escritura.

Dessa vez vai ser: “ninguém prova que Bolsonaro deu ordens para esses crimes”. Como se ele fosse assinar uma declaração mandando dar um golpe de estado ou matar um adversário político.

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