Os golpes de estado e as acerolas quando ainda estão verdes

Golpes mudam o curso dos acontecimentos atrasando o amadurecimento daquilo que já está na sociedade ou fazendo com que aquilo apodreça mais rápido.

Publicado em 26/11/2024 às 20:00
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O sujeito, parte míope e parte ingênuo com caráter duvidoso, observa o que era uma flor no pé de acerola e percebe ela se transformando em fruto. Logo é tomado por um desejo incontrolável de experimentar o sabor daquela iguaria maravilhosa. Unindo ansiedade, cobiça e desconhecimento, antes mesmo de amadurecer, quebra sua ligação com a árvore, acreditando-se um grande herói que antecipou a História. Acontece no quintal terroso, ao pé da aceroleira, ou na paisagem cimentícia de Brasília.

Nos dois casos, trata-se de um golpe.

O golpe

Golpes acontecem quando pessoas com tendência reacionária ou revolucionária, indignadas com a própria situação, decidem que o presente não serve mais e deve ser modificado à força. Na visão reacionária, é preciso voltar ao passado. Na visão revolucionária, é necessário começar de novo.

O Brasil comemorou com um feriado, faz pouco tempo, o dia 15 de Novembro. A “Proclamação da República” não é chamada pelo nome correto e os integrantes não são considerados golpistas porque houve sucesso no intento, mas foi um golpe militar.

Verdes

E o problema dos golpes é que eles tiram as frutas ainda verdes do pé. O amadurecimento, depois disso, nunca é o ideal e movimentos assim acabam sempre atrapalhando o desenvolvimento natural do país (e das frutas).

O 15 de Novembro, por exemplo, precipitou algo que já estava amadurecendo lentamente. A República aconteceria em alguns anos, talvez com uma boa transição, ao invés de ser imposta com uma ruptura política e social da forma como aconteceu.

Não amadureceu

Quer uma prova de que o Brasil não estava pronto para a República quando ela foi arrancada do pé à força em 1889? Basta observar que o próprio Deodoro da Fonseca precisou fechar o Poder Legislativo menos de dois anos depois, num movimento conhecido como “Golpe de três de Novembro”.

Decorridos vinte dias deste autogolpe, foi obrigado a renunciar sob a ameaça de ter o Rio de Janeiro bombardeado pela própria Marinha. Em dois anos, três crises imensas.

Depois disso, num espaço de 73 anos, a República passou por outros cinco golpes de estado até o que ocorreu em 1964. A média foi de um golpe a cada 15 anos.

Da dita proclamação até o regime militar, nenhum brasileiro completou 30 anos sem ter visto ao menos dois golpes de estado na vida. Isso não é um ambiente amadurecido.

Até hoje

Estamos na sexta fase da República, porque todas as anteriores deram errado. E não importa se eram democráticas ou não, todas falharam.

Mesmo agora, após a redemocratização, dos cinco presidentes eleitos com voto popular, um chegou a ser preso e dois sofreram impeachment.

Em 1889 a acerola estava verde e a dificuldade para amadurecer ainda é a maior dificuldade que nosso sistema político e social enfrenta.

Estabilidade

O governo Jair Bolsonaro, de direita, foi importante porque mostrou uma opção às gestões de esquerda que governaram o Brasil desde o início deste século. Mas era o próprio Bolsonaro, e sua rejeição apontava para isso, uma opção que não apresentava a moderação esperada pelo brasileiro com juízo mais amadurecido.

Desde antes da eleição de Lula (PT) em 2022, o Brasil já caminhava para o centro moderado. Os indícios estão na dificuldade que o atual governo, petistas, encontra para implementar sua agenda habitual de forte presença (e gasto) do estado.

O brasileiro elegeu um governo de esquerda, mas tem cobrado dele um comportamento de centro. Isso é o que tem gerado confusão na cabeça dos próprios petistas. E brigas entre eles.

Sem moderação

Golpes mudam o curso dos acontecimentos atrasando o amadurecimento daquilo que já está na sociedade ou fazendo com que aquilo apodreça mais rápido.

Se o golpe planejado em 2022 tivesse dado certo, o amadurecimento desse clima, de busca por estabilidade que encaminha o país para o centro moderado, apodreceria rapidamente antes de estar pronto para ser consumido.

De um lado teríamos uma direita cada vez mais radical impondo normalidade à força e do outro uma esquerda cada vez mais raivosa e ressentida. Não haveria espaço para qualquer tipo de moderação.

Mesmo quando falham

E os golpes são tão tóxicos que até quando não dão certo interferem no curso natural das coisas. Agora mesmo, a simples descoberta de que houve a intenção, a negociação e o planejamento para um golpe, pode acabar fortalecendo o governo Lula e o sentimento de “preocupação com o que pode acontecer caso ele não seja reeleito em 2026”. Sim, isso vai ser utilizado como argumento na próxima eleição.
O caminhar do país em direção a um centro moderado pode ser atrasado, mesmo com os golpistas tendo sido impedidos pelas circunstâncias da época, somente por causa da repercussão do que eles fizeram.

Na Rádio Jornal

O programa Debate, transmitido pela Rádio Jornal nesta terça-feira (26), abordou os golpes de estado e as diferenças entre o evento de 2022 e o de 1964, um golpe militar que mergulhou o país em vinte anos de ditadura.

O programa é apresentado por Natália Ribeiro e teve participação dos professores Sérgio Buarque e Guilherme Lemos, além deste colunista que vos escreve.

Nem lá fora…

Buarque, que chegou a ser exilado na ditadura de 1964, lembrou que o ambiente era completamente diferente do que existe hoje, tanto o nacional quanto o internacional. Ele lembrou a Guerra Fria e a presença forte do partido comunista no Brasil. “Hoje, meus amigos do PCdoB podem até se chatear, mas nem lá existem mais comunistas. Isso acabou”, explica, lembrando que hoje todos estão muito mais integrados ao sistema.

…e nem em casa

No ambiente nacional também não havia apoio. Os próprios militares estavam divididos e os que queriam dar algum golpe eram minoria. Outras instituições que foram importantes em 1964, como parte da imprensa e empresários, ficariam contra uma ruptura desse tipo em 2022, exatamente por causarem instabilidade extrema.

A tendência era que o golpe fosse um fracasso retumbante, embora fosse gerar caos. “O que mais me impressiona é que se ficou muito perto de algo realmente acontecer”, afirmou Sérgio Buarque.

Formação

O professor Guilherme Lemos, que é antropólogo e pesquisa o Exército Brasileiro, citou a necessidade de se observar e melhorar a formação dos militares no país para que eles tenham maior amplitude e não fiquem limitados a qualquer tipo de ideologia dentro dos quartéis.

A politização dos últimos anos, é verdade, contribuiu bastante para a tentativa que ocorreu em 2022. O alerta vale para o futuro, para evitar golpes que ainda não estão sendo planejados e podem prejudicar o país.

Prioridade

Os militares precisam ser ensinados a ter a postura que teve o general do Exército Freire Gomes, por exemplo, que no momento em que foi chamado para discutir a possibilidade golpista com o seu chefe maior, o presidente da República, orientou Jair Bolsonaro a mudar de assunto ou “teria que lhe dar voz de prisão”.

Diferente do colega da Marinha na época, o almirante Garnier, que se prontificou a usar o efetivo em favor do político ali no cargo.

Os militares devem ser ensinados que a prioridade é seguir o que diz a lei e “proteger o exercício dos poderes constitucionais”. Porque tudo além disso atrasa o país.

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