O papel fundamental de um general e de um brigadeiro para evitar o golpe

No material da Polícia Federal, o nome Freire Gomes, general do Exército, aparece 141 vezes. Já o nome do brigadeiro Baptista Júnior surge 48 vezes.

Publicado em 27/11/2024 às 20:00
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Nas 884 páginas do relatório da Polícia Federal divulgado esta semana, com o inquérito envolvendo o ex-presidente Jair Bolsonaro e mais 36 pessoas em uma tentativa de golpe, o nome “Freire Gomes” aparece 141 vezes. Já o nome Baptista Júnior é visto 48 vezes. Os dois se destacam por causa da pressão que sofreram no período entre o fim do segundo turno e o dia 31 de dezembro de 2022.

Em dois meses, o general Freire Gomes, comandante do Exército, e o brigadeiro Baptista Júnior, no comando da Aeronáutica, ouviram ataques, cobranças, lamentos, ameaças, choro e ranger de dentes. O objetivo era fazer com que aderissem e levassem suas tropas para o plano de golpe que se buscava implementar.

A resistência dos dois é exemplar e deveria servir de modelo para a formação dos oficiais das Forças Armadas. Deveriam ser homenageados e suas histórias deveriam ser contadas nas escolas. Quem tiver a paciência de ler todas as centenas de páginas do trabalho da PF vai entender.

Reuniões

O ápice do conjunto de atitudes republicanas dos dois se dá em momentos distintos, mas igualmente merecedores de reconhecimento. Ambos estavam já cansados. Eram chamados sucessivamente a participar de reuniões com o presidente Jair Bolsonaro e com o ministro da Defesa, Paulo Sérgio Nogueira, onde eram apresentadas propostas prevendo “Estado de Sítio”, “Estado de Defesa” e “Intervenção Federal”.

Sucessivamente negaram apoiar o tal decreto e foram sendo pressionados de todas as formas possíveis.

Exército

Freire Gomes era o que mais recebia o assédio, porque sem o Exército seria impossível levar o plano adiante.

O general chegou a virar alvo da milícia digital do governo, com ordens de Braga Netto, candidato a vice na chapa bolsonarista. Foi atacado em programas de televisão também. Freire Gomes era xingado diariamente nas redes sociais, manifestantes tiveram acesso ao endereço e acamparam em frente a casa dele, constrangendo toda a família.

Deputados, como Carla Zambelli (PL), o paravam em eventos oficiais para forçá-lo a aceitar o plano golpista. Um assessor pessoal, cooptado, marcou reuniões dele com militares golpistas para que o comandante do Exército fosse pressionado, antigos professores e colegas de formação militar foram escalados para aconselhá-lo a aderir.

E, ainda assim, ele resistiu.

Prisão

O fim da linha foi quando quase deu voz de prisão ao então presidente da República, seu chefe, no meio de uma dessas reuniões.

Bolsonaro insistia para que o Exército apoiasse a tal “minuta do golpe”, quando escutou do comandante um “ponto final”: “Caso o senhor tente mesmo isso, terei que prendê-lo”. Jair Bolsonaro, àquela altura, era o chefe supremo das Forças Armadas, “comandante do comandante” do Exército. A atitude demonstra uma coragem que poucos teriam.

O episódio nem foi contado pelo próprio Freire Gomes, mas pelo colega Baptista Júnior, da Aeronáutica, que estava na sala.

Aeronáutica

Baptista Júnior foi o outro comandante que não aceitou a ideia de golpe. Desde o início, as interceptações, as conversas por aplicativo entre os envolvidos na organização criminosa e os depoimentos atestam que ele e Freire Gomes rechaçaram de cara o documento por entenderem que se tratava de um golpe de estado.

O chefe da Aeronáutica, que também sofreu muita pressão nas redes sociais e na vida privada para aderir, teve dois momentos mais fortes nessa negativa. Um com o ministro da Defesa e outro com o próprio presidente.

O silêncio e a saída

No primeiro, depois de muitas idas e vindas, Baptista Júnior foi chamado ao gabinete do Ministro da Defesa, também seu chefe. Ele relata que a “minuta do golpe” estava em cima da mesa, mas que não a pegou.

Paulo Sérgio, o ministro, disse que iria entregá-lo para analisar melhor, o brigadeiro foi taxativo: “o texto prevê que o presidente eleito não assume o cargo em 1° de janeiro de 2023?”. A pergunta foi seguida pelo silêncio do ministro, confirmando que Lula não subiria a rampa.

Ato seguinte, diz o depoimento, o brigadeiro avisou que não iria nem tocar no papel e, imediatamente, levanta-se em direção à porta de saída, indo embora.

Aviso

O segundo momento é mais forte porque também foi encarado pelo então presidente da República com preocupação. Baptista Júnior contou que estava conversando com Bolsonaro, tentando demovê-lo da ideia de um golpe, quando reiterou que os homens sob seu comando não iriam participar e resolveu avisar: “Independente do que aconteça, o senhor não será o presidente em 1° de janeiro”.

O “aviso”, contam, deixou Bolsonaro assustado e muito preocupado.

Só um capitão

Para entender a preocupação de Bolsonaro nessa conversa é necessário lembrar um fato curioso que aconteceu naqueles dias. Um ministro do STF com quem Bolsonaro conversava bastante chegou, nessa época, a fazer uma pergunta muito direta: “presidente, se o governo for militar, o senhor acha que os generais vão aceitar ser governados por um capitão?”. A pergunta começou a rondar muito a cabeça do presidente e o “aviso” de Baptista Júnior deve ter reforçado isso.

O fato era que, para a Constituição, o mandato de Bolsonaro, não sendo reeleito, terminava em 31 de dezembro. Se os militares assumissem, todos generais de quatro estrelas, provavelmente não iriam mais devolver o poder para obedecer a um capitão.

Mais cinco exemplos

Ainda outros ótimos exemplos são os dos generais Richard Nunes, Tomás Paiva e Valério Stumpf. Os três comandavam, respectivamente, os comandos do Nordeste, Sudeste e Sul.

Nas reuniões em que a proposta de alguma intervenção foi apresentada ao Estado Maior, eles divergiram imediatamente e combateram a ideia. Outros dois generais integravam esse grupo resistente na alta cúpula: André Luis Novaes Miranda e Guido Amin Naves.

Os cinco também tornaram-se vítimas da milícia digital do governo, comandada por Braga Netto, e foram muito atacados por não aderirem à proposta de golpe.

Firmeza e covardia

Está bem claro em todo o material da Polícia Federal divulgado esta semana que o golpe, incluindo os assassinatos do presidente e do vice-presidente eleitos, do ministro Alexandre de Moraes, entre outros, só não aconteceu por dois motivos muito objetivos. O primeiro foi a posição firme do Exército e da Aeronáutica que, diferente da Marinha, não aderiram ao plano. E, segundo, por causa da covardia de Bolsonaro, que ficou assustado com a possibilidade de dar um golpe e terminar preso ou exilado pelos próprios generais quando assumissem o poder.

Nos dois casos, a República deve ao general Freire Gomes, ao brigadeiro Baptista Júnior e aos seus comandados, que foram a maior parte das Forças Armadas, comprometidas com a Constituição. Porque a Constituição é o que importa, independente de bandeira partidária, ideologia ou visão de mundo particular.

Punição exemplar

Ao mesmo tempo em que é preciso reconhecer isso, também é necessário cobrar punição séria, dura e exemplar para os que foram arrastados por suas paixões à confusão entre defender o Brasil e defender suas ideologias e preferências políticas.

Movidos pela ganância pessoal disfarçada de patriotismo, esses imbecis motivados e fardados quase provocaram assassinatos e uma guerra civil no país.

Cumprido o rito legal, o mínimo é que sejam presos por muitos e muitos anos, sem qualquer honra. Figuras como o almirante Garnier, que colocou a Marinha à disposição do golpe, precisam ser empurrados para o esgoto da História.

Mas que fique o aprendizado e que o exemplo seja utilizado para os oficiais sendo formados agora. É o legado que essa maluquice precisa deixar.

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