A natureza da Constituição Federal e o discurso de Hugo Motta
Hugo Motta, de forma proposital, vincula o resgate da natureza constitucional ao "ninguém é de ninguém" da distribuição de emendas.

O novo presidente da Câmara, Hugo Motta (Republicanos/PB), fez um discurso cheio de recados e símbolos. É o mais novo na História a assumir este cargo oficialmente, com 35 anos, mas sua fala na inauguração do mandato teve mais substância e volume do que os quatro anos de Arthur Lira (PP/AL), seu antecessor.
O estilo de Lira é de ação, mas sem que se possa entender bem o que ele pretende. Dominou metade do governo Bolsonaro e controlou o fluxo de metade do governo Lula sendo, em público, mais esfinge do que um livro aberto.
Estilo
Para muitos políticos, não ter uma opinião formada é a melhor forma de ter uma opinião lucrativa. Esse é o estilo de Lira, que sempre fez questão de brigar por mais poder para o Legislativo, mas nunca verbalizou o caminho a seguir para que isso acontecesse.
Preferia ir construindo essa força nas conversas de bastidor. Motta não. O novo presidente abriu o jogo logo na entrada, cobrando a natureza da Constituição Federal do Brasil pelo que ela é e não pela forma como ela é utilizada há 37 anos.
Natureza
Disse Hugo Motta, em determinado ponto: "Foi nessa época [falava sobre o impeachment de Dilma Rousseff] que aqui, nesta Casa, em 2016, por meio da adoção das emendas impositivas, o parlamento finalmente se encontrou com as origens do projeto constitucional. A crise exigia uma nova postura, o fim das relações incestuosas entre Executivo e Legislativo".
O que ele quis dizer? É que a origem do projeto constitucional da Carta que foi promulgada em 1988 é a de um regime parlamentarista. E isso dá muita confusão.
Parlamentarista
Sim, a Constituição Brasileira tem muitos elementos parlamentaristas porque foi feita, originalmente, para ser parlamentarista. É por isso que o texto dá um poder ao Congresso Nacional que parece excessivo no dia-a-dia. Porque ele é mesmo excessivo para um regime presidencialista.
O problema é que ela foi escrita com elementos dos dois sistemas e no fim ninguém entrava em acordo sobre qual adotar, cada grupo com seu interesse. Definiu-se, então, que um plebiscito seria realizado cinco anos depois para que o povo decidisse. A campanha do presidencialismo foi forte e venceu. Mas ninguém tirou o poder que o parlamento já havia recebido na lei e a coisa complicou.
Corrupção
O presidente não consegue governar sem o Congresso e precisa da aprovação de deputados e senadores para tudo que quer fazer. Para isso é necessário ter maioria nas duas casas.
O problema é que na política brasileira o convencimento foi assumindo novas formas de acordo com o caráter de cada legislatura. E como dizia Ulysses Guimarães, um dos pais dessa constituição frankenstein, se você achar que uma legislatura é ruim, espere a próxima que vai ser pior. No começo o convencimento era por ideologia partidária, rapidamente passou a ser por distribuição de cargos, logo escalou para compra descarada de apoio. E aí tivemos o escândalo do Mensalão.
Travado
No Brasil, o presidente precisa formar uma coalizão como se fosse um primeiro-ministro. Mas quando um primeiro-ministro não consegue formar maioria, simplesmente ele renuncia e se fazem novas eleições.
No caso do Brasil, como o impeachment é um processo complicado, o país tem que aguentar quatro anos (oito com reeleição) de crise institucional. A economia, a infraestrutura, as bases do desenvolvimento ficam travadas esperando que a configuração política mude ou alguém ceda.
Duro
O novo presidente da Câmara chegou a ser bastante duro com o presidencialismo de coalizão: "um mecanismo político, na verdade um eufemismo de nome pomposo, mas de funcionamento que se provaria perverso. Nada mais, nada menos que a locação, o aluguel, o empréstimo do poder semipresencial do Legislativo ao Executivo".
Firmes ideais
Ninguém se engane, porque o hospício, o Congresso e o presídio estão lotados de pessoas carregadas com ideais firmes e de honestidade jurada. Quando Hugo Motta fala nesse resgate da Constituição, tem seus interesses.
Tanto que seu exemplo se refere às emendas, que é um tipo de apropriação legislativa do orçamento para controlar o fluxo financeiro do Executivo. A ferramenta é justa e legal dentro da maluquice que a Constituição criou, do tal presidencialismo de coalizão.
Ardil 1
A discussão atual não é sobre o dispositivo de emendas existir ou ser correto, mas sobre a sua transparência. Os deputados querem distribuir dinheiro sem que se saiba ao certo sua indicação de origem e destino. A transparência é um princípio constitucional, seja parlamentarista ou presidencialista.
Motta, de forma proposital, vincula o resgate da natureza constitucional ao “ninguém é de ninguém” da distribuição de emendas. E não foi a única vinculação ardilosa do novo presidente. Ele fez o mesmo com a democracia.
Ardil 2
Em certo ponto do discurso, Motta começa a fazer referências à importância da democracia e a vincula diretamente à força do Congresso. "Não existe ditadura com parlamento forte. O primeiro sinal de todas as ditaduras é minar e solapar todos os parlamentos. Por isso, temos de lutar pela democracia”, afirmou.
O conteúdo está correto, mas como o momento é de questionamentos sobre a transparência das emendas, inclusive no STF, a frase foi entendida como um recurso retórico para dizer que “todos aqueles que questionarem o Congresso estarão contra a democracia”. Teve gente que não gostou.
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