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Crianças devem ser "alimentadas" com leitura durante a pandemia do coronavírus

Secretário da Primeira Infância do Recife, Rogério Morais sugere que famílias aproveitem a oportunidade de estreitar laços com as crianças lendo para elas. "Livro é alimento do cérebro", diz. Até domingo Recife realiza a VI Semana do Bebê, com atividades virtuais e gratuitas

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Publicado em 26/05/2020 às 15:51 | Atualizado em 26/05/2020 às 16:19
Foto: Diego Nigro / JC Imagem
Estímulo à leitura deve começar desde a primeira infância - FOTO: Foto: Diego Nigro / JC Imagem

Uma rotina completamente diferente. Tudo mudou rapidamente e as famílias se viram em isolamento social. A pandemia da covid-19 impulsionou uma nova maneira de defesa da saúde e regras de convivência precisaram ser mudadas. Uma das primeiras iniciativas como medida protetiva para evitar a aceleração do contágio pelo novo coronavírus foi a suspensão das atividades escolares, tanto nos colégios públicos quanto nos particulares (desde 18 de março, em Pernambuco).

No universo da primeira infância, período que compreende as idades entre zero a seis anos, o desafio talvez seja ainda maior por se tratar da principal fase do aprendizado, não apenas relacionado ao ensino regular, mas, sobretudo, do desenvolvimento social, cognitivo e emocional. São muitos os desafios, ajustes, perdas e ganhos.

Nesse novo contexto, qual o poder dos livros no desenvolvimento na primeira infância? Como a leitura pode ser estimulada diante, muitas vezes, do ócio e ou desânimo? Qual a importância que a leitura assume nesse momento de atividades presenciais suspensas?

Nesta conversa com a jornalista Ana Paula Novaes, o secretário executivo para a Primeira Infância do Recife, Rogério Morais, fala sobre o poder do livro no desenvolvimento do ser humano na sua principal fase da aprendizagem em meio ao maior desafio já enfrentado, até então, pela humanidade no século XXI.

Nesta semana, até o próximo domingo (31), a prefeitura do Recife realiza a VI Semana do Bebê. Devido à pandemia, as atividades serão virtuais. O tema é “Família, criança e felicidade: cuidados conectados, desenvolvimento pleno”. Em parceria com o Unicef, são ofertadas mais de 130 atividades, todas online e gratuitas. Na programação (veja aqui) estão previstos vídeos, lives, webnários, debates, shows e rodas de conversas.  

Por que a primeira infância é a fase mais rica e mais importante do ser humano e como a leitura se relaciona no desenvolvimento da criança?

ROGÉRIO - Diversos estudos científicos recentes trouxeram evidências robustas de que o período do zero aos seis anos de vida é a grande “janela de oportunidade” do desenvolvimento humano, a fase em que o cérebro cresce quase 90% do tamanho que terá na fase adulta e quando são criadas a maior quantidade das conexões neurais que permitem o aprendizado. O contato com livros, seja escutando histórias contadas por adultos ou lendo, tem um potencial enorme de estímulo às funções executivas e para a aquisição da linguagem.

Quais os estímulos que a leitura é capaz de causar durante o desenvolvimento das crianças?

ROGÉRIO - A quantidade de palavras que uma criança escuta por minuto, por exemplo, pode proporcionar uma melhor capacidade de oralidade. Elas tendem a repetir o padrão (tamanho das frases e entonação) dos seus cuidadores. Essa quantidade certamente fica como um acervo, que posteriormente apoia a criança no processo de aquisição da língua escrita, facilitando a correlação dos fonemas com os símbolos do nosso sistema de escrita alfabética. Quanto mais contexto, maior a capacidade de letramento, de compreensão e interpretação de textos. Além disso, as histórias têm a capacidade de entreter, de trabalhar com as emoções de provocar a imaginação e a criatividade da criança, provocando momentos de intenso deleite.

Desde 18 de março as escolas públicas e particulares de Pernambuco estão com aulas presenciais. Sem essa rotina, muitas famílias enfrentam oscilação de sentimentos. Tristeza, preocupação, angústia, ócio são alguns deles. Como vencer essas barreiras e manter vívidas as relações de afetividade? Como inserir a leitura como instrumento de transformação dessas realidades?

ROGÉRIO - Importante destacar que a Sociedade Brasileira de Pediatria não recomenda o uso de telas para crianças de até dois anos e, no máximo, uma hora de exposição diária até os cinco anos de idade. Isso porque a luz da tela pode causar distúrbios de humor e de sono nos pequenos. Além disso, a tela traz um prejuízo do isolamento dentro de casa. As crianças aprendem com as relações e estão em uma etapa da vida onde precisam entender a relação do “eu” com os “outros”, até aonde vai o espaço dela, onde começa o espaço do outro, perceber regras de socialização.

Os livros possibilitam o fortalecimento de laços na família. As experiências de contação de histórias pelos cuidadores geram vínculos e memórias afetivas, muitas guardadas para sempre. Pode ser uma ótima forma de aproximação de mães, dos pais, avós e entre irmãos. A leitura é um hábito. Quem desenvolve, lê diariamente por prazer, para buscar informações, para estudar. Assim como outros hábitos, precisa ser introduzida no cotidiano, podendo começar com um gênero textual de preferência, como tirinhas, contos, gibis, jornal e evoluindo para leituras mais densas, conforme o gosto de cada um.

Mesmo com tão pouco idade, uma vez que estamos tratando de crianças até seis anos de idade, como a leitura pode influenciar positivamente em outras áreas do conhecimento durante essa fase do desenvolvimento humano?

ROGÉRIO - A fluência leitora desenvolve a velocidade de aprendizado e, em voz alta, a oralidade, possibilitando o aumento da competência em apresentações de trabalho, muito importante na vida escolar e para o trabalho. A capacidade de interpretação ajuda em todas as disciplinas curriculares. Para entender a história, por exemplo, é preciso uma leitura e releituras dos contextos. Para ir bem em matemática, é fundamental compreender bem os enunciados dos problemas.

Recife é uma cidade que apresenta contrastes sociais que colocam em enorme desvantagem as crianças em situação de vulnerabilidade socioeconômica. Quais os impactos que o isolamento social é capaz de provocar nessa população durante a primeira infância?

ROGÉRIO - De acordo com estudos compilados pela Fundação Maria Cecília Souto Vidigal, precisamos ficar atentos, principalmente, com a elevação dos níveis de estresse tóxico provocado por abusos, violência ou sentimento de abandono. Elevações do nível deste tipo de estresse provocam uma diminuição do desenvolvimento de áreas de raciocínio, justo no período de maior desenvolvimento humano. As estatísticas do mundo todo já apontam para o crescimento de casos de violência infantil durante a pandemia. O tempo de quarentena (mais de 60 dias) já é temporalmente considerável dentro do período da primeira infância. Restrições de acesso a serviços ou mesmo a espaços de lazer podem causar impactos no desenvolvimento motor, emocional e social das crianças.

Que ações a Secretaria Executiva para a Primeira Infância do Recife têm realizado para minimizar as consequências do isolamento para os pequenos moradores da cidade, durante a pandemia?

ROGÉRIO - O acesso à leitura tem sido a principal aposta. Fizemos parcerias com várias entidades do terceiro setor para entrega de quase 30 mil livros. Devido às desigualdades socioeconômicas e aos contextos familiares distintos, entendemos que as orientações precisam ser simples e seguras, para serem realizadas em casa, mesmo diante das dificuldades da rotina conturbada.

Por tudo que defendemos, acreditamos que a leitura é a estratégia mais efetiva, que o livro, sobretudo nesse período de isolamento social, é o alimento do cérebro, um item tão básico quanto os demais gêneros alimentícios das cestas. Com menor chance de atividades externas, em cômodos muitas vezes pequenos, a leitura é ainda mais importante, é uma oportunidade de fazer a criança viajar sem sair do lugar.

Além dos livros, produzimos mensagens para as crianças de comunidades de cuidados com higiene e prevenção ao vírus da cobid-19 através de cards para mídias sociais e spot para rádios comunitárias e Rádio Frei Caneca, entendendo que a criança também pode ser protagonista do processo de combate ao vírus, cuidando de si e dando exemplos aos adultos.

O mundo inteiro enfrenta um dos problemas de saúde mais graves que se tem na história recente. Cada lugar com suas especificidades sociais, econômicas e culturais. No caso do Brasil, um país de dimensão continental e com distorções socioeconômicas tão discrepantes, como visualizar uma geração de crianças sem os estímulos provocados pelo universo lúdico, criativo e informativo da leitura?

ROGÉRIO - O Brasil já era antes da pandemia o país democrático mais desigual do mundo. Toda criança nasce com o mesmo potencial humano natural de desenvolvimento, do ponto de vista biológico. Essa desigualdade é produzida nos primeiros anos de vida, quando se permite uma lacuna entre o período de maior potencial de desenvolvimento e as maiores privações de direitos da vida humana, justo a um ser sem autonomia, ainda totalmente dependente dos adultos. Temos que priorizar o combate à pobreza infantil. Se antes já era o melhor investimento que um governo poderia fazer, agora se tornará um imperativo para a reconstrução do País. Não há como desenvolver a economia sem as pessoas.

Diante desse cenário em que o a volta ao normal será um “normal diferente”, quais as perspectivas de futuro para a primeira infância? É possível olhar para frente e traçar metas que corrijam os efeitos causados pela ausência do convívio social?

ROGÉRIO - Acredito em um “novo normal”, porque a experiência que estamos passando tem sido emocionalmente forte e isso fica na memória, afeta hábitos. Do ponto de vista econômico e social, estamos aprendendo diversas lições, percebendo que a vida vale mais do que o capital, que muitos precisam de muito pouco para sobreviver e os que têm muito podem ser mais solidários. O Estado precisa retomar com investimento social. E isso para a primeira infância ressignifica algumas pautas.

Espero que o Fundeb seja aprovado no prazo, com uma maior contribuição da União e uma ponderação maior para a educação infantil. Espero que os gastos com educação e saúde não fiquem mais limitados pelos mecanismos da PEC-95 e que a PEC-11/2020 tome corpo, que pensemos seriamente em sobretaxar os grandes lucros dos bancos para limitarmos a pobreza infantil, seguindo mecanismos já existentes no Reino Unido, Canadá e Nova Zelândia.

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