Desafios e impactos da pandemia de covid-19 na educação
Debate na Rádio Jornal, nesta sexta-feira, promoveu debate para discutir como a pandemia na vida escolar de milhares de estudantes brasileiros
"É um desastre, fico muito triste." Com essas palavras, bastante encabulado, Guilherme Pereira, 10 anos, responde como se sente ao chegar ao 5º ano do ensino fundamental sem saber ler. Aluno da Escola Municipal Professora Maria da Paz Brandão Alves, que fica no Sancho, Zona Oeste do Recife, o menino está entre as milhares de crianças e adolescentes brasileiros afetados pela pandemia de covid-19. Com apenas um telefone celular para dividir entre ele e mais três irmãos e sem conectividade regular à internet, Guilherme teve dificuldade, ano passado, para acompanhar as atividades escolares, remotas até metade de ano e híbridas no restante dos meses. Neste início de ano letivo, a maioria dos gestores e educadores estão focados em garantir a abertura das escolas para aulas presenciais, com segurança diante do avanço de casos por causa da variante ômicron. É consenso a necessidade urgente de uma força tarefa para resgatar quem abandonou os estudos e recuperar graves lacunas de aprendizagem como as de Guilherme.
Os impactos e desafios da educação, em meio às incerteza provocadas pela pandemia, foram debatidos nesta sexta-feira (04), na Rádio Jornal, no Programa Super Manhã. O jornalista Wagner Gomes conversou com o secretário de Educação do Recife, Fred Amancio; com o titular da Cátedra Sérgio Henrique Ferreira do Instituto de Estudos Avançados da Universidade de São Paulo (USP), ex-reitor da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) e ex-secretário de Educação de Pernambuco, Mozart Neves Ramos; e com o coordenador do Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef) no Nordeste do Brasil e chefe do escritório do Unicef no Recife, Dennis Larsen. Os três defenderam o ensino presencial. Também concordaram que as redes de ensino, públicas e privadas, devem estimular a vacinação de crianças e adolescentes contra a covid-19, mas que a não imunização não pode impedir a frequência dos estudantes à escola.
Pernambuco tem cerca de 2,2 milhões de alunos na educação básica, segundo o Ministério da Educação (MEC). Desse total, 50% estão matriculados nas escolas municipais, 22,6% na rede particular e o restante em colégios estaduais ou federais. "Globalmente, 615 milhões de estudantes foram impactados pela covid-19, com escolas parcialmente ou totalmente fechadas. No pico da pandemia, o Brasil chegou a 5 milhões de crianças sem acesso à educação, principalmente as mais pobres, indígenas, afrodescendentes. Agora é o momento de assegurar conectividade, metodologias e segurança para voltar às aulas presenciais. E garantir que as crianças estejam nas escolas", destacou Dennis Larsen.
Ele citou uma ação de busca ativa realizada pelo Unicef em 20 Estados para ir atrás dos alunos que abandonaram a escola. Desde o começo da pandemia, mais de 80 mil crianças e adolescentes foram encontrados pelo programa e voltaram para a escola. Em Pernambuco, entre 2020 e 2021, foram 10.800 rematriculados.
SEM APOIO
"O governo federal, lamentavelmente, no âmbito do Ministério da Educação, não fez seu dever de casa do ponto de vista de organizar a colaboração com Estados e municípios. Pior, o presidente da República deixou de colocar em prática um importante programa de conectividade digital para crianças mais pobres. Foi um grande retrocesso", lamentou Mozart Ramos.
"Infelizmente o MEC, diferente do que aconteceu em outros países, não assumiu o seu papel de coordenar, propor diretrizes nacionais, apoiar atividades, inclusive financeiramente, já que 60% dos impostos vão pra o governo federal. Cada Estado e município foi criando suas alternativas. Há cidades que ainda não voltaram com aulas presenciais e não têm alternativas para atividades remotas", comentou Fred Amancio.
Mozart Ramos defendeu, neste início de ano letivo, que haja avaliações diagnósticas para saber como foi o aprendizado dos alunos. "O MEC já está com resultado do Saeb nas mãos. É importantíssimo que mande logo, principalmente para as redes públicas de ensino, para que os gestores saibam como se encontram as suas crianças do ponto de vista de déficit de aprendizagem", diz Mozart.
A busca ativa dos estudantes que abandonaram a escola, associada a programas de renda social, é outra ação defendida por Mozart. "As famílias foram muito afetadas do ponto de vista de emprego e redução de salário. Os jovens, principalmente, estão sendo muito pressionados pra buscar atividade laboral complementar. Então tem que haver busca ativa e um programa de renda social pra trazer nossas crianças e jovens para escola", sugere o educador, que cita ainda a oferta de atividades escolares no contraturno escolar.
INVESTIMENTOS
Segundo Fred Amancio, houve avaliação diagnóstica, ano passado, para identificar como foi a aprendizagem nos alunos da rede municipal do Recife - são 95 mil estudantes. O ano letivo começou nesta sexta-feira (04) presencialmente para 22 mil alunos das séries finais do ensino fundamental e turmas de EJA e remoto para os demais 73 mil discentes da educação infantil e anos iniciais do fundamental. Dia 14 todos passarão a ter aulas presenciais. "Temos um desafio enorme pela frente porque os prejuízos de aprendizagens foram muito grandes. Não só no Recife, mas no mundo todo. O Brasil foi um dos países que mais passou tempo com escolas fechadas", comentou o secretário de Educação.
Ele citou investimentos em tecnologia como uma das estratégias adotadas pela prefeitura do Recife para minimizar os impactos negativos da pandemia. A tão esperada entrega de tablets para os estudantes, prometida para o início do segundo semestre de 2021, deve ocorrer em breve, mas ele não deu prazo. Fred Amancio afirmou que além desses equipamentos, foram comprados notebooks e TVs para as escolas. "Também teremos um novo contrato de internet de banda larga com o mesmo padrão das escolas americanas. Atualmente a média é de 2 a 5 megas por escola, o que não dá pra nada. Passaremos a ter entre 50 e 100 megas", anunciou.
MUDANÇAS
Mozart Ramos defendeu que é preciso oferecer formações para os professores aproveitarem melhor o digital em suas práticas pedagógicas. Também mudanças nas escolas. "Vamos ter que combinar o ensino presencial com o virtual. Mas não dá para manter esse modelo conteudista. A escola precisa trabalhar novas habilidades e competências. O Brasil tem a chance de sair melhor na educação do que entrou se olhar para o farol. Porque se ficar olhando pelo retrovisor vamos ficar num buraco sem fim. É preciso ter a coragem de promover mudanças na educação que deveriam ter sido feitas lá atrás e que agora a pandemia mostrou com mais ênfase", comentou.
FUTURO
Maria Clara, irmã gêmea de Guilherme, e Gisele, 15, outra irmã, foram várias vezes pegar o sinal de internet, embaixo de um poste, no meio da rua, para acompanhar as atividades escolares em 2020. Outro irmão, Gabriel, 17 anos, abandonou os estudos no começo do ano. Ficou triste, quase em depressão. Voltou para escola no meio do ano, depois de muita insistência da mãe. A família mora na comunidade Sapo Nu, no bairro do Totó, Zona Oeste do Recife.
"Gisele está vendendo laranja na BR para ajudar em casa. Ganha R$ 25 por dia. Também porque quer comprar uma calça e um sapato pra voltar para escola. Gabriel cata reciclável. Ele vai juntar dinheiro para comprar uma mochila para estudar. A única herança que posso deixar para meus filhos é a educação, faço o possível para que não parem", comentou Silvânia Elza, 46, mãe deles, emocionada depois de o filho Guilherme revelou que ainda não sabe ler.