Opinião

A última visita de JK ao Recife (o que é fato, não é fake). Por Ricardo Noblat

Ricardo Noblat, em artigo enviado ao blog, reclama ter recepcionado JK em sua última visita ao Recife, contestando o advogado José Paulo Cavalcanti Filho

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Ricardo Noblat

Publicado em 24/05/2022 às 17:09 | Atualizado em 24/05/2022 às 19:19
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Eu sei que fui buscar o ex-presidente Juscelino Kubitschek no Aeroporto dos Guararapes no dia 7 de julho de 1975, um ano e pouco antes da sua morte trágica em um acidente no quilômetro 165 da Rodovia Dutra, entre São Paulo e Rio.

E eu sei que José Paulo Cavalcanti não foi, como escreveu no Blog de Jamildo e no Jornal do Comercio no último dia 20 sob o título “Símbolos da democracia”, certamente por um lapso de memória.

Guardo a edição do semanário Jornal da Cidade, datada de 28 de agosto a 3 de setembro de 1976, que estampou em sua capa a manchete: “JK: A última vez que viu Recife”. Ela traz um desenho do rosto do ex-presidente assinado por Sávio, o criador da escultura do Galo da Madrugada que todos os anos encanta o Brasil.

Reprodução/Blog Imagem
Capa do Jornal da Cidade, com reportagem de Ricardo Noblat - Reprodução/Blog Imagem

Na página 2 do jornal, em um quadro sob o título “Destaque”, entre as muitas seções e reportagens, consta: “Ricardo Noblat – A última viagem de JK ao Nordeste”. Ela foi publicada na página 11. Eu a escrevi tão logo soube da morte do ex-presidente e a ofereci ao jornal do qual era colaborador assíduo, embora não remunerado.

À época da derradeira visita de JK ao Nordeste, eu chefiava a redação da sucursal da revista MANCHETE. Um dia, Adolpho Bloch, dono da revista, telefonou-me e disse com sua voz fanhosa e arrastada: “O presidente Juscelino chegará amanhã no Recife e quero que você vá buscá-lo no aeroporto. Fique à disposição dele”.

Bloch e JK eram amigos de longa data. Cassado e perseguido pela ditadura militar de 64, de volta ao Brasil depois amargar o exílio, JK despachava em uma sala do luxuoso prédio da MANCHETE na Praia do Russel, no Rio. Ele desembarcou no Guararapes no fim da tarde. Foi assediado por pessoas queo reconheceram de imediato.

Aprígio, motorista da MANCHETE, ajudou-me a retirar JK dali e a embarcá-lo no carro da revista. O ex-presidente estava à caça de votos para ocupar uma cadeira na Academia Brasileira de Letras, e no Recife morava um acadêmico, o poeta, escritor e jornalista Mauro Mota, e em João Pessoa outro, José Américo de Almeida.

Fomos direto para o casarão de Mauro Mota, todo iluminado ao cair da noite. Os dois conversaram a sós durante algum tempo e depois se juntaram à família e a amigos de Mota para um lanche. Por recomendação de Bloch, eu havia reservado um apartamento para JK no Grande Hotel do Recife, mas ele não quis.

- Ainda é cedo. Vamos direto para João Pessoa. Lá tem um ótimo hotel – disse JK sem tirar do rosto o sorriso que era sua marca.

A certa altura da viagem, animado com as perguntas que eu lhe fazia, JK avistou Goiana. Passava das 23h.

- Que cidade é aquela?

Disse-lhe qual era. Ele comentou:

- Já estive aqui em comício quando era candidato a presidente. Não é aí que tem um restaurante onde se come guaiamum?

- É o Buraco da Gia – respondi.

- Vamos lá...

- Mas, presidente, é tarde.

- Vamos mesmo assim – ele ordenou.

Apenas uma das portas do restaurante estava aberta. Ao entrarmos, um casal ocupava uma das mesas do lado direito;outro, uma mesa mais ao fundo;e Luiz, o dono, estava atrás do balcão. Luiz não acreditou no que viu. Depois de abraçar JK demoradamente, decretou que ele só sairia dali depois que jantasse.

A JK, como prato inicial, Luiz serviu um ensopado de guaiamum, e como prato principal, lagostas e postas assadas e cozidas de peixe, enquanto Goiânia, adormecida, era despertada com a notícia de que o ex-presidente voltara à cidade. Juntou gente à porta, algo como 30 pessoas.Foi um sufoco para que JK deixasse o restaurante.

Então, formou-se uma pequena carreata que seguiu o carro da MANCHETE até o Hotel Tambaú. No dia seguinte, por volta das 9h, o ex-governador da Paraíba, José Américo de Almeida, recebeu-nos em sua casa de praia. JK o conhecia desde que ele fora ministro do presidente Getúlio Vargas. Eu já o entrevistara uma vez.

JK evitava chamar José Américo pelo nome. E quando eu mencionei duas vezes o nome dele durante a viagem, JK procurou no carro um pedaço de madeira para bater com os dedos dobrados da mão direita. À falta de um, bateu na sola do próprio sapato. O escritor tinha a injustificada fama de dar azar aos outros.
Pensei que da casa dele voltaríamos direto para o Recife, mas não. JK amava banho de povo, e perguntou:

- Não tem um restaurante perto de uma lagoa?

Tinha. E estava lotado de turistas de Goiás quando lá chegamos antes do meio-dia. Dá para imaginar como foia festa. As 24 horas que passei com JK terminaram no Aeroporto dos Guararapes. Por décadas, circularam versões sobre sua morte quando o Opala que o conduzia chocou-se com um caminhão. Tudo fake!

Aprígio, o motorista, morreu. Vanildo Ayres, ex-presidente do Santa Cruz e dono do jornal, morreu. O diagramador da reportagem também morreu. Aldo Paes Barreto, editor do jornal, me disse que não se lembra da reportagem. Vera Ferraz, secretária-geral do jornal e minha querida amiga, tem uma vaga lembrança dela.

No filme “BladeRunner”, dirigido por Ridley Scott e estrelado por Harrison Ford, seres humanos artificiais, chamados replicantes, se apropriam da memória alheia. Se depender de mim, o que no filme era naturalmente ficção jamais se transformará em realidade.

(O jornalista Ricardo Noblat é colunista so site Metrópoles)

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Texto de Noblat, no Jornal da Cidade - Reprodução

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