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Burocracia de carreira do Ministério da Saúde salvou Bolsonaro de desgaste e Brasil de prejuízo bilionário

O preço pago pelo imunizante, de US$ 15 por dose, foi 1000% mais alto do que o estimado pela própria fabricante seis meses antes da compra

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Fernando Castilho

Publicado em 23/06/2021 às 14:00 | Atualizado em 23/06/2021 às 15:15
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Gestores eleitos para o Executivo brasileiro conhecem uma frase sobre o assédio aos governantes. Todos os dias - seja presidente, governador ou prefeito - precisa enfrentar três tipos de abordagens: um doido, advertindo para uma conspiração; um inventor com um a ideia para salvar o governo; e um mala, propondo um negócio não republicano.

>> Leia Mais: MPF pede investigação criminal sobre compra de vacina indiana Covaxin pelo governo Bolsonaro. O preço pago pelo imunizante, de US$ 15 por dose, foi 1000% mais alto do que o estimado pela própria fabricante seis meses antes da compra

Para os dois primeiros, é fácil criar barreiras e evitá-los. Mas o último exige sempre muita atenção, gente próxima e de confiança para detectar o que existe por trás da oferta de um negócio muito bom para a população e, é claro, a determinação para barrar quando a conversa derivar para a corrupção.

Não é fácil porque o mala sempre chega apresentando por alguém do círculo do gestor. Um deputado, um diretor de estatal, um consultor estratégico e, não raro, por alguém da família, da qual o sujeito se aproxima e faz amizades.



O perfil do mala, todo mundo conhece. Ele é sempre muito agradável, gentil, disponível e capaz de demonstrar profundo conhecimento de assuntos que, notadamente, não têm a mínima formação. Gente boa, conversa fácil e sempre com uma proposta pronta para ajudar o país, estado ou município.

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O presidente Jair Bolsonaro, como todo presidente, vive assediado pelos três tipos de interlocutores. Mas, no caso das vacinas da Índia, parece claro que viu que pessoas a quem julgava, absolutamente, isentas desse tipo de pressão, em algum momento, se dispuseram a ajudar o pessoal da farmacêutica Precisa na tramitação da compra dos imunizantes indianos.

E, não fosse a velha e boa burocracia de carreira, - aquela que vê governos e gestores nomeados por deputados chegar e passar - ele e o seu governo teriam se envolvido numa espetacular negociação no valor de R$ 1,6 bilhão para compra de vacinas cujo preço está sendo agora revelado ao País.


A advertência de um servidor de carreira, acostumado com os tramites de importação livrou, ao menos até agora, que o Brasil entrasse numa negociação altamente suspeita, que talvez a CPI da Covid-19 possa esclarecer melhor.

 

 

Claro que a possibilidade de ter o irmão de um deputado aliado do presidente ajudou. Permitiu que ele levasse documentos e mostrasse diretamente as “inconsistências” do inusitado interesse de pessoas fora dos quadros do Ministério da Saúde na tramitação da importação, além de uma inexplicável disposição para um embate do Ministério da Saúde com a Anvisa.


Ora, qualquer servidor de carreira no Governo sabe que a Anvisa pode ser muito chata, exigente, irritantemente burocrática, mas que goza de enorme prestígio internacional pela seriedade de seus servidores.


Dificilmente, ela seria “enquadrada” por um deputado aliado do governo. Muito menos agora que é presidida por um almirante que tem acesso direto ao presidente.


Mas isso não impediu que, primeiro, se aprovasse no Congresso uma lei que permitia a importação de vacinas sem aprovação da Anvisa - felizmente vetada pelo presidente - e, a seguir, de uma MP ( nº 1.000 de 20 de março de 2021), no valor de R$ 2,3 bilhões para compra de vacinas que, inexplicavelmente, não constava os preços.

 

Sabe-se, agora, que cada dose da Covaxin, custará ao Brasil US$ 15, após sua tramitação relâmpago no MS até ser barrada pela falta de documentos. Só esta semana, tivemos a revelação de que ela custou 1.000% a mais, quando comparada com o preço de venda cobrado pelo mesmo laboratório no seu país de origem, a Índia.


A Covaxin não foi vendida como os demais imunizantes, diretamente pelo laboratório. Mas ainda assim teve tramitação e alocação de recursos, que as demais não tiveram.
Felizmente, parece claro, que não chegará aos braços dos brasileiros depois das denúncias de um possível "hiper" faturamento.


Mas, independentemente do que vier a acontecer, ficou a lição da importância de o país ter uma burocracia técnica e concursada para cuidar do que é importante e pensar a longo prazo.
E isso não tem nada a ver com que entra no setor público não para servir ao público, mas para servir-se do público.

 

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