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Enquanto Santa Cruz sonha com SAF, mercado já trabalha com clubes de futebol lançando ações na Bolsa

O fato de estar sob regime de Recuperação Judicial não impede, entre outras coisas, que o Santinha possa virar uma SAF e pensar, no futuro, em lançar ações da B3.

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Fernando Castilho

Publicado em 29/08/2023 às 12:45 | Atualizado em 29/08/2023 às 13:49
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No meio desse debate sobre o futuro da Santa Cruz Futebol Clube, onde o Conselho Deliberativo rejeitou, por unanimidade, o balanço financeiro referente ao ano de 2022, tem uma coisa curiosa sobre a lenda urbana em que o presidente Antônio Luiz Neto transformou a questão da Sociedade Anônima de Futebol (SAF). Ele diz estar negociando mas até agora ninguém - ao menos até hoje - conseguiu sequer saber qualquer detalhe sobre o "Grupo de Investidores" que estaria interessado no Mais Querido.

Não há porque duvidar da capacidade de articulação do presidente da Santa Cruz. Ou das portas que conseguiu abrir para eventuais investidores, a despeito de o clube estar sendo gerido sob um regime de Recuperação Judicial que permitiu ao dirigente, ao menos, escalonar os débitos, embora eles não estejam sendo quitados pelo simples fato de o clube não ter receitas.

Existe ainda outro problema decorrente dessa situação na Justiça do Trabalho, que tem o poder de confiscar qualquer depósito que seja feito na conta do clube. E que o não cumprimento dessa determinação pode acarretar mais problemas para o dirigente que assinou o pedido da RJ.

Charles Johnson/JC IMAGEM
Em situação crítica, clube enxerga SAF como possibilidade de se reerguer - Charles Johnson/JC IMAGEM

E SE O SANTA CRUZ VIRASSE SAF?

Entretanto, enquanto Antônio Luiz Neto fala da SAF do Santa Cruz como se ela fosse uma coisa com um dia para acontecer é importante observar o que, de fato, está acontecendo no mercado da bola no Brasil relacionado a um Parecer de Orientação nº 41 da Comissão de Valores Mobiliários (CVM).

E ele trata exatamente da aceitação de novas formas de captação de recursos que um clube, sob condição de SAF, já pode praticar e que, no limite da imaginação do sofrido torcedor do Santa Cruz, poderia ser uma solução para o time de maior torcida de Pernambuco.

O PO-41 diz que os clubes poderão abrir seu capital social com um IPO (sigla em inglês para Oferta Pública Inicial de Ações). Dessa forma, os times poderão receber recursos de potenciais investidores interessados em se tornarem sócios da atividade futebolística do time, desde que tenha uma perspectiva de lucro futuro com o recebimento de dividendos. Aplicando-se, na prática, a operação que já é adotada por grandes empresas.

Calma, Nação Tricolor. Existe uma colossal distância entre a possibilidade de o Santa Cruz fazer uma oferta inicial de ações (IPO na sigla em inglês) e a sua situação atual. A começar pelo fato de que para ser uma empresa (ou SAF) com ações na B3, os balanços dos últimos cinco anos teriam que ser auditados de acordo com regras bem transparentes (o nome disso é compliance), acessíveis a qualquer pessoa.

GOVERNANÇA DE NÍVEL

O Santa Cruz precisaria nomear um diretor de Relações com Investidores e publicar, a cada três meses, suas contas numa página do clube denominada de Central de Resultados.

Isso só aumenta a necessidade do presidente Antônio Luiz Neto se cercar de bons assessores financeiros para cuidar disso.

E isso tem a ver, por exemplo, com o relacionamento do clube com seus possíveis investidores. Entre outras coisas, antes de anunciar e verificar o impacto do IPO Tricolor, o Santa Cruz teria que publicar o que na linguagem da B3 (a sigla da Bolsa de Valores do Brasil) chama-se Fato Relevante.

Curiosamente, o fato de estar sob regime de Recuperação Judicial não impede, entre outras coisas, que o Santinha não possa virar uma SAF e pensar, no futuro, em lançar ações da B3. Aliás, a possibilidade de fazer uma oferta inicial de ações é interesante. Exatamente pelo tamanho de sua torcida, ninguém duvida que milhares de torcedores fariam fila para sair da condição de sócio para acionista do clube.

Mas voltemos à questão das possíveis formas de financiamento que um clube de futebol pode ter acesso. Por exemplo, as SAFs também poderão se utilizar de um tipo próprio de captação de recursos, denominado “Debêntures-FUT”.

CHARLES JOHNSON/JC IMAGEM
Muitos torcedores têm a tradição de levar rádio de pilha para acompanhar a narração dos jogos - CHARLES JOHNSON/JC IMAGEM

UM DEBÊNTURES SANTA CRUZ?

Para quem, no máximo, aplicou na caderneta de poupança ou fez um PIX: Debêntures-FUT é um instrumento que as SAFs poderão usar para captar recursos para investimento das suas atividades e para o pagamento de despesas atreladas ao futebol.

É uma espécie de Nota Promissória sofisticada, com data de vencimento, onde, ao final, o clube ressarce o investidor com os juros acumulados. Para ilustrar: antes de aplicar o calote nos seus investidores, as Lojas Americanas emitiram R$ 2 bilhões em Debêntures, cada uma no valor de R$ 100 mil, e venderam sem problemas.

Tem outro jeito de uma eventual SAF Santa Cruz captar mais dinheiro. O nome em inglês é Crowdfunding. É uma espécie de vaquinha de captação por meio de oferta pública de distribuição de valores mobiliários em plataforma eletrônica de investimento regulado e supervisionado pela CVM.

É um pouco mais sofisticado que as chamadas vaquinhas na Internet onde as pessoas depositam dinheiro para ajudar, por exemplo, uma família com um parente que precisa de uma cirurgia cara. No Crowdfunding, o clube com uma SAF não só diz quanto recebeu como tem que prestar contas da aplicação.

Mas é possível imaginar a satisfação do torcedor do Santa Cruz dizendo que comprou um lotes de ações do IPO tricolor, ou que ajudou no Crowdfunding para comprar um jogador de melhor qualidade? E orgulho em dizer que comprou uma Debêntures-FUT do seu clube do coração. Pela legislação atual, por ter um faturamento de até R$40 milhões, uma SAF poderia fazer um Crowdfunding sem problemas.

 

RAFAEL MELO/SANTA CRUZ FUTEBOL CLUBE
O super-herói da Marvel posou de camisa do Santa Cruz, que tem a Volt como nova fornecedora. - RAFAEL MELO/SANTA CRUZ FUTEBOL CLUBE

LEI EXIGE TRANSPARÊNCIA

Claro que, pelo modelo jurídico das SAFs - instituído pela Lei nº 14.193, de 2021 - as sociedades deverão observar normas específicas relacionadas à vedação de acúmulo dos cargos de presidente do conselho de administração e de diretor-presidente, além da participação obrigatória de membros independentes no conselho de administração.

Esse é um item que, por exemplo, pode impedir de dirigentes como Antônio Luiz Neto possam se apresentar como dono da SAF. Aliás, existe um capítulo específico sobre controle e governança corporativa, que estabelece uma estrutura mínima de governança a ser seguida pelas SAFs, podendo os respectivos estatutos sociais determinarem que os dirigentes respondem criminalmente com o seu CPF.

Outra coisa: a CVM observa que o acionista com mais de 10% das ações votantes de uma SAF e for, simultaneamente, titular de qualquer espécie de ações de outra sociedade do gênero, não terá direito a voz ou voto nas assembleias gerais. E nem poderá participar da administração de tais empresas. Isso, entre outras coisas, pode impedir que os dirigentes não possam incluir no estatuto do clube que o presidente tem o controle acionário da SAF.

Naturalmente, o Santa Cruz hoje não pode sequer falar de governança corporativa. Mas essa é uma realidade que se apresenta diante das agremiações para que captem recursos no mercado de capitais, através de emissão de ações ou de um título próprio destinado a investidores profissionais do setor. Isso não quer dizer que o Santa Cruz não possa sonhar com isso. 

Mas, certamente, a atual diretoria e o seu presidente precisam se preparar para o futuro.

BRASIL JÁ TEM 24 SAFs

Hoje, o Brasil tem 24 SAFs criadas para as diversas divisões, sendo os casos mais relevantes os de três clubes grandes, como Cruzeiro, Vasco e Botafogo. Mas o Figueirense (SC), o Maringá, no Paraná, e o Coritiba (PR) se transformaram em SAF e até em Pernambuco, o Flamengo Sport Club de Arcoverde é uma SAF.

Então por que a torcida tricolor não pode sonhar em virar SAF e no futuro fazer um Crowdfunding, lançar uma série de Debêntures-FUT e no futuro lançar um IPO? Basta que sua diretoria tenha procedimentos transparentes, a começar por revelar quem são mesmo os investidores interessados em colocar dinheiro no clube.

E isso vai exigir uma mudança radical na mentalidade de seus dirigentes. Começando por se cercar de profissionais com acesso aos investidores de porte. Até porque, o que não falta é um exército de advogados de reputação duvidosa se oferecendo para conduzir o processo de uma SAF.

Sempre com a condição de não terem seus nomes divulgados.

(Reprodução/Redes Sociais)
Lula (PT), candidato à presidência da República, posa com camisa do Santa Cruz - (Reprodução/Redes Sociais)

 

 

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