Para atender à demanda de empresário próximo ao governo, Lula ataca a Anvisa que o protegeu ao validar as vacinas da Covid-19

Ao falar de improviso, Lula disse que ouviu uma demanda e uma provocação à ministra da Saúde dizendo que preciso a Anvisa andar um pouco mais rápido.

Publicado em 25/08/2024 às 19:00

O presidente Luiz Inácio Lula da Silva acompanhou nesta sexta-feira (23), a inauguração da fábrica de polipeptídeo sintético da EMS, em Hortolândia (SP). O empreendimento conta com tecnologia de ponta para produção das moléculas de liraglutida e semaglutida, destinadas ao tratamento de obesidade e diabetes, que serão comercializadas no país e no mundo.

A EMS é líder na produção de genéricos que representam cerca de 45% do seu faturamento total. Em 2023, ela registrou um resultado de R$6,7 bilhões de faturamento. Ela exporta para 56 países e tornou-se uma grande parceira das políticas do Governo Federal nos governos do PT.

Apesar dos números, a nova fábrica demandou investimento de R$70 milhões e recebeu R$48 milhões de financiamento com o BNDES.

O presidente leu um discurso escrito onde criticou o governo Bolsonaro e saudou o presidente da empresa contando um pouco da trajetória da empresa que cresceu a partir de 2003.

Fora do texto escrito

Mas a coisa começou a complicar quando decidiu falar de improviso quando disse que ouviu uma demanda do “amigo Sanchez” que fez “uma provocação à ministra da Saúde, ao vice-presidente da República e ao presidente da República: de que é preciso a Anvisa andar um pouco mais rápido para aprovar os pedidos que estão lá, porque não é possível o povo não poder comprar remédio porque a Anvisa não libera”.

Ele assumiu um compromisso com o “amigo Sanchez”. E avaliou que se tratava de uma demanda que “nós vamos tentar resolver”. E completou: “Quando algum companheiro da Anvisa perceber que algum parente dele morreu porque o remédio que poderia ser produzido aqui não foi produzido, porque eles não permitiram, aí a gente vai conseguir que ela seja mais rápida e atenda melhor os interesses do nosso país.”

Para atender a demanda do “amigo Sanchez” , o presidente não precisava atacar a Anvisa, seus funcionários e a história da mais respeitada agência de controle do Brasil internacionalmente pelas boas práticas.

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Lula recebe a primeira dose da Covid 19 autorizada pela Anvisa. - Divulgação

Garantia da Anvisa na Civid 19

O presidente, como os brasileiros, foi vacinado contra a Covid-19 graças às atuações da Anvisa. Que também protegeu o país de diversas ações deletérias no Congresso tentando aprovar vacinas de fabricantes não reconhecidos pelas mais respeitadas agências internacionais.

E esqueceu a posição de embate que a Anvisa colocou contra o governo Bolsonaro. Em tempos de cloroquina e fakenews, a Anvisa nos salvou do vírus da desinformação do governo que o antecedeu.

Mas o presidente é reincidente em criar problemas quando sai da caixinha do discurso preparado pela assessoria e isso sempre constrange os brasileiros.

A declaração de Lula, ao prometer resolver uma demanda do “amigo Sanchez” abre a preocupação sobre um ataque institucional de seu governo à uma agência de regulação.

Agência resistiu a Bolsonaro

O presidente esquece que foi a condição de independência da Anvisa que permitiu resistir à pandemia aos ataques do então presidente da República. Mas por alguma razão, o presidente quer transformá-la no departamento do Executivo como tentou fazer com o Banco Central?

A repercussão das declarações (de improviso) do presidente provocaram reações da Anvisa, dos seus servidores e de várias entidades, o que levou o ministério da Saúde publicar uma nota de esclarecimento.

Nela, o Governo Federal afirma que tem ciência da situação em que encontrou a Anvisa em 2023 no início da gestão do Presidente Lula. A Instituição estava, como tantos outros órgãos, sucateada, sem reposição de vagas e sem o apoio necessário para cumprir seu papel com a segurança sanitária e compromisso com a saúde da população.

Diz que reconhece todo o trabalho e excelência da Anvisa. E que, na Anvisa, nossa orientação precípua sempre foi garantir a segurança e eficácia dos medicamentos e produtos para a saúde. E que sempre respeitando e valorizando os servidores e as ações integradas com o Ministério da Saúde.

Nísia põe panos quentes

A ministra da Saúde, Nísia Trindade, percebeu a gravidade da situação criada pelo presidente e após a resposta do presidente da Anvisa Antônio Barra Torres que disse que a fala de Lula “entristece, agride, avilta e, acima de tudo, enfraquece a Anvisa."

Ele afirmou que "ao nos qualificar de pessoas que precisam da dor da morte de entes queridos para fazer o próprio trabalho, equivoca-se o orador, e mesmo não desejando, coloca a população contra a Anvisa, que sempre a defendeu", afirmou Barra Torres.

Barra Torres ganhou o respeito da sociedade brasileira quando enviou a Jair Bolsonaro uma carta dizendo que “como Oficial General da Marinha do Brasil, servi ao meu país por 32 anos. Pautei minha vida pessoal em austeridade e honra. Honra à minha família que, com dificuldades de todo o tipo, permitiram que eu tivesse acesso à melhor educação possível, para o único filho de uma auxiliar de enfermagem e um ferroviário”.

E disse que iria “morrer sem conhecer riqueza Senhor Presidente. Mas vou morrer digno. Nunca me apropriei do que não fosse meu e nem pretendo fazer isso, à frente da Anvisa”. Dos dirigentes das agências de regulação do Brasil ele é, certamente, o mais respeitado.

RICARDO STUCKERT
Presidente Lula da Silva, na fábrica da EMS. - RICARDO STUCKERT

Embate com Bolsonaro

No governo Bolsonaro, Barra Torres, que é militar, enfrentou o presidente e o desafiou para que “Se o senhor dispõe de informações que levantem o menor indício de corrupção sobre este brasileiro, não perca tempo nem prevarique, Senhor Presidente. Determinou imediata investigação policial sobre a minha pessoa, aliás, sobre qualquer um que trabalhe hoje na Anvisa, que com orgulho eu tenho o privilégio de integrar.” Barra Torres continua no comando da agência até hoje.

Na carta à Lula, Barra Torres revelou que a Anvisa precisou ceder 35 servidores requisitados pelo ministério da Saúde e que, até agora, o governo não atendeu ao pedido de contratação de 91 servidores feito pela agência. Os servidores também saíram em defesa da agência apoiando Barra Torres que deverá ser substituído depois de sua passagem na agência.

Dificuldades de orçamento

Há uma distância de bilhões de reais entre o faturamento das EMS, se comparado ao orçamento da Anvisa. Junto com as demais agências ela também está sendo vítima de ataques dentro do governo pelo fato de seus dirigentes estarem no cargo depois de serem nomeados por Jair Bolsonaro.

Está explícita a intervenção do ministro das Minas e Energia, Alexandre Silveira, cuja defesa do governo Lula o tornou mais radical que o próprio PT. Silveira na semana passada ameaçou intervir na Aneel caso ela não analisasse os pedidos do governo.

Mas no caso da EMS a questão não é apenas um atraso na Anvisa. A empresa do “amigo Sanchez” deixou de apenas produzir medicamentos livres de patentes (genéricos) que ainda hoje respondem por quase metade de seu faturamento.

EMS quer novos medicamentos

Seus interesses estão em novas empresas como a Bionovis uma empresa nasceu em 2012, a partir de uma joint venture entre os renomados laboratórios brasileiros Aché, EMS, Hypera Pharma e União Química. O seu foco é a produção nacional de medicamentos biológicos e biossimilares de alta complexidade.

Ela fez parcerias com gigantes globais do setor e laboratórios públicos e já produz medicamentos na área de oncologia como Rituximabe indicado para o tratamento do linfoma não Hodgkin, leucemia linfoide crônica, artrite reumatoide, granulomatose com poliangeíte e poliangeíte microscópica. E o Trastuzumabe indicado para o tratamento do câncer de mama inicial, câncer de mama metastático e não metastático e câncer gástrico avançado.

Em 2013, a EMS criou nos Estados Unidos a Brace Pharma, empresa com foco no desenvolvimento de terapias inovadoras aos pacientes. Passa a ser o primeiro laboratório do Brasil a apostar no mercado americano de inovação radical.

Toda essa trajetória de sucesso enche de orgulho o Brasil. E pelo que se tornou no mercado de fármacos, a EMS não precisa que Lula determine uma intervenção da Anvisa para ter aprovado os seus medicamentos.

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Antônio Barra Torres, presidente da Anvisa. - Divulgação

Seguir o protocolo

Basta seguir os procedimentos de governança que publicamente defende e a tornaram referência depois de 60 anos. Na verdade, as falas de Lula prejudicaram a imagem da EMS porque colocaram a empresa sob suspeita de usar o acesso ao governo do PT para seus interesses. O que, certamente, não é verdade.

Na verdade, a EMS é o exemplo no setor de medicamentos do que Lula chama de empresa de capital nacional que ele sonhou desde a política de campeões nacionais cujos donos ele conhece e dialoga diretamente. É uma concepção de capitalismo próximo do estado.

Talvez por isso o pedido de Carlos Sanchez tenha feito Lula avaliar que a Anvisa estava retardando a autorização dos pedidos não seja só da EMS, mas das empresas nacionais. E se a Anvisa tem dificuldades de pessoal, cabe ao presidente e à ministra Nísia Trindade equipá-la. Até porque dar ouvidos às demandas de qualquer empresário que tem a oportunidade de estar com o presidente é normal.

Governo precisa ajudar

O governo do presidente pode ajudar a indústria farmacêutica nacional, especialmente as médias empresas que não têm acesso direto ao presidente como o dono do EMS. E mais ainda se turbinar as ações da Anvisa na fiscalização do enorme volume de medicamentos contrabandeados e vendidos sem controle.

Mas quando ataca a agência, ele agride a um grupo de funcionários que entre outras coisas ajudaram ao Brasil ser uma referência mundial na análise e tratamento de vacinas. E obriga a cientista Nísia Trindade a recolher as brasas que sua análise rasa espalhou.

E dá força ao discurso negacionista que a agência enfrentou no governo passado e que resistiu com dignidade graças a servidores como Barra Torres, funcionários e a diretoria da Anvisa que enfrentou Jair Bolsonaro num momento em que os servidores precisavam ter coragem cívica. E não raro, correndo riscos pessoas bem mais graves que apenas as falas equivocadas de Lula.

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