Sucesso da chinesa DeepSeek é fruto de 40 anos de investimentos dos EUA na China, que agora é potência global

Acordo que levou para a China parte da produção industrial dos EUA incluiu professores e brasileiro que teve grande presença no projeto na área de TI

Publicado em 28/01/2025 às 8:00 | Atualizado em 28/01/2025 às 15:28
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Por trás da espetacular queda no valor das ações das companhias americanas ligadas à produção de serviços com uso da tecnologia da Inteligência Artificial, que destruíram em apenas um dia US$ 1 trilhão de valor de mercados das bigtechs, está a figura de um chinês, Liang Wenfeng, considerado excêntrico até mesmo pelos seus colegas no meio acadêmico e que, mais uma vez, provou a velha lei da ciência de que sempre é possível evoluir fazendo as mesma coisas usando menos recursos a partir de uma nova tecnologia.

Apenas a Nvidia, que era avaliada em US$ 3,49 trilhões na sexta-feira (24), acabou perdendo cerca de US$ 590 bilhões nesta segunda-feira (27). Sua queda foi seguida por outras fabricantes de chips, como a Broadcom, com queda de 17,4%; Advanced Micro Devices (AMD), recuo de 6,37%; Marvell Technology, recuando 19,11%; ASML, em 5,75%; e Arm, em 10,24%.

Mas o que aconteceu para isso? Bom, em resumo, pode-se dizer que o que Liang Wenfeng - dono da DeepSeek - fez foi usar um bloco de chips da Nvidia, a queridinha do mercado de IA, comprado quando ainda a companhia liderada por ele, e não estava proibida de vender seus novos chips dedicados à produção de aplicativos de IA.

Fora do setor de IA

Liang Wenfeng ficou rico com um fundo, High-Flyer, que usa IA e algoritmos para identificar padrões capazes de afetar o preço das ações, e construiu um aplicativo que faz as mesmas coisas maravilhosas que os novos chips estão fazendo e prometendo revolucionar esse mercado.

Ele declarou que com apenas US$ 6 milhões, a DeepSeek fez um aplicativo que roda com entregas tão boas como os que as gigantes do setor de componentes entregam e que estão mirando investimentos de bilhões de dólares que os investidores agora estão avaliando como extremamente superavaliados, o que derrubou as ações de companhias como Nvidia e OpenAI. E isso custou, apenas no pregão de ontem, US$ 1 trilhão em valor de mercado.

Entretanto, o que poucas pessoas lembram é que, na origem dessa capacidade extraordinária dos chineses na área de Tecnologia da Informação diante dos americanos, está uma decisão tomada lá atrás, no governo Jimmy Carter,  enquanto trabalhava pelo fim da guerra entre Israel-Egito - o que rendeu o prêmio Nobel da Paz de 1970. Naquela ocasião, os Estados Unidos celebraram um acordo de cooperação com a China então liderada por Deng Xiaoping.

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Liang Wenfeng, Fundador da DeepSeek - Divulgação

Mão de obra barata

Pelo acordo, os Estados Unidos enviaram para dezenas de províncias da China, então um país pobre, com muita gente e rural, sua produção industrial, que demandava mais mão de obra, fazendo o país asiático obter dólares com as exportações.

Naturalmente, isso precisava incluir primeiro mandar as máquinas, os manuais e os técnicos para treinar os chineses, além de capital para bancar as novas instalações, embora o governo chinês financiasse os distritos industriais e a infraestrutura básica, especialmente portos e estradas.

O acordo também incluiu a formação de professores nas universidades da China e dos Estados Unidos, o que resultou num grande programa de intercâmbio, fazendo milhares de professores irem dar aulas e ajudar a fazer pesquisas na China, e milhões de alunos e professores iriam estudar nos Estados Unidos nas melhores universidades americanas.

Quarenta ano depois, Donald Trump está sentindo os efeitos dos disciplinados alunos e professores chineses, que aprenderam não apenas nos manuais que as companhias americanas lhes enviaram, mas evoluíram para fazer ciência e entregar o que o país ostenta hoje em termos de poderio industrial, que o levou a ser a segunda potência global atrás dos antigos padrinhos.

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Professor Carlos Paz de Araujo, da Universidade do Colorado. - Divulgação

Um brasileiro na China

O professor Carlos Paz de Araújo, um natalense praticamente desconhecido no Brasil e vencedor do Prêmio Daniel Noble Award, em 2006, uma honraria equivalente ao Prêmio Nobel na área de TI, foi um desses professores que os Estados Unidos mandou para a China, e que ajudaram a construir o mega parque industrial que o país tem hoje, trabalhando a serviço de algumas das mais importantes universidades americanas.

Ele detém mais 600 patentes registradas associadas a nanotecnologia, especialmente a memória ferroelétrica, que está na base do design dos novos chips da Nvidia.

Araújo, hoje com 71 anos e trabalhando agora com IA, foi professor de engenharia elétrica da Universidade do Colorado (EUA) e professor-consultor da Universidade Fudan de Xangai, na China, e da Universidade Tecnológica de Kochi, no Japão.

Ainda muito por descobrir

A importância de Araújo para a ciência é que a memória ferroelétrica FeRAM tem capacidade de armazenamento de 64 mbps, pode ser lida 100 trilhões de vezes e usa dez vezes menos eletricidade que a Flash, a memória não volátil mais utilizada no mundo.

Foi a FeRAM, por exemplo, que possibilitou a fabricação de celulares menores que o antigo modelo “tijolão”. A memória também permitiu que as máquinas fotográficas digitais ficassem mais ágeis e finas. Todos os leitores de DVDs usam o chip. Além disso, seu custo é quase a metade das memórias não voláteis disponíveis no mercado. E ele escreveu o design do chip do icônico Startac da Motorola.

Ouvido pelo Jornal do Commercio nesta terça-feira (27), Araújo afirma que infelizmente ainda é muito cedo se fazer comentários sobre o que está acontecendo no mundo a partir da informação do aplicativo da startup chinesa. Ele lembra que, há uma semana, já se sabia em Davis, no Colorado, onde mora, que a DeepSeek iria sair com algo novo.

“O que posso dizer é que a IA ainda terá que vencer muitos obstáculos para chegar a ser mais do que se fala na mídia internacional”, adverte. Eu também trabalho nesta área e também acho os modelos usados tanto na OpenAI (que escreveu o aplicativo do ChatGPT) como em DeepSeek, que usam modelos linguísticos muito pesados”, diz o cientista brasileiro.

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Jensen Huang fundador da Nvidia. - Divulgação

Uso dos chips disponíveis

Para ele, o que aconteceu foi que os chips do aplicativo chinês, que na realidade também são da NVIDIA, foram mais bem aproveitados. “Hoje estes chips são proibidos de serem vendidos na China. A inovação foi nos modelos matemáticos de IA que usaram. Mas nada super novo, apenas usados com mais eficiência. Ainda tem muito para acontecer”, finaliza o professor.

A trajetória de Carlos Paz de Araújo como professor e pesquisador na China e nos Estados Unidos como a carreira de Liang Wenfeng ensina como investimentos constantes e com foco definido fazem as nações se tornarem potências.

Deng Xiao Ping, que é autor do famoso mantra chinês “Enriquecer é glorioso”, percebeu que o seu país poderia usar sua mão de obra barata para reduzir os custos de produção nos Estados Unidos, mas viu a oportunidade extraordinária de capturar conhecimento quando ganhava bilhões de dólares com as exportações para os Estados Unidos e a seguir para outros países.

Milhões de engenheiros

Ele decidiu criar um programa de formação de 300 mil engenheiros por ano durante mais de três décadas que se mantém ainda hoje. E formou tantos engenheiros que XI Jinping, ao assumir, mandou reabrir os cursos de Antropologia da Universidade de Pequim para formar a nova geração de líderes do partido, então nas mãos de camaradas com formação em engenharia.

Como disse o professor Araújo, o lançamento do R1 (uma classificação de universidades com alta atividade de pesquisa) da DeepSeek, desencadeou debates acalorados no Vale do Silício sobre qual seria a capacidade das empresas de IA dos Estados Unidos, com mais recursos, como Meta e Anthropic, de defender sua vantagem técnica. Mas ainda tem muita coisa por vir.

E assim como Mao Tsé Tung, Deng Xiaoping e agora Xi Jinping, que foi elevado ao panteão de um dos três construtores da nova China, Liang Wenfeng se tornou um símbolo de orgulho nacional na China.
Segundo uma reportagem de Eleanor Olcott e Zijing Wu, do Financial Times, Wenfeng foi o único líder da área de IA a ser selecionado para participar de uma reunião pública de empresários com a segunda autoridade mais poderosa do país, o primeiro ministro Li Qiang.

JOEL SAGET / AFP
Unidade de processamento da Nvidia - JOEL SAGET / AFP

Focando no desenvolvimento

Ele orientou os empresários chineses a "concentrarem esforços para romper as barreiras tecnológicas centrais". Homem de confiança de Xi Jinping, ele está por trás da estratégia de domínio global da China em veículos elétricos, algo que hoje assusta os Estados Unidos de Trump, o Japão e a Europa temem que reduza o peso econômico de suas indústrias automobilísticas.

No fundo, e grosso modo, o que se pode dizer é que depois que Washington proibiu a exportação dos chips mais potentes da Nvidia para a China, empresas chinesas de IA se viram desafiadas a encontrar maneiras inovadoras de amplificar o poder de computação dos chips que tinham à disposição.

Liang Wenfeng, que é conhecido por pagar bons salários, simplesmente fez isso: desafiou seus engenheiros e está provocando uma nova revolução no mundo ainda por descobrir da Inteligência Artificial.

E o mais curioso é que lá trás, quando o mundo viu a substituição do tijolão da Motorola por um aparelho que usava uma tala de memória ferroelétrica FeRAM com capacidade de armazenamento que pode ser lida 100 trilhões de vezes e usa dez vezes menos eletricidade que a Flash, então presente dos aparelhos, tinha a presença discreta de um brasileiro que ajudou ao mundo entrar em definitivo na nanotecnologia, hoje largamente embaraçada nos caríssimos chips da Nvidia.

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