"Sem livros não se faz um país"
Para o autor do Manifesto em defesa das livrarias, um país que se preocupa com a sobrevivência das pequenas livrarias tem um ambiente onde impera a liberdade de opinião e de expressão
Uma das vozes mais respeitadas do mercado editorial no Brasil, Alexandre Martins Fontes aproveitou a ocasião do evento Rio International Publishers Summit, durante a Bienal do Livro do Rio de Janeiro, na semana passada, para fazer um Manifesto a favor das livrarias. O texto completo do manifesto está disponível no site do Publishnews.
Nesta entrevista à Literária do JC, o diretor-executivo da Editora WMF Martins Fones, e da Livraria Martins Fontes Paulista, em São Paulo, reafirma a importância das livrarias para o mercado editorial, bem como para as cidades e o país. “Elas acolhem a vida cultural das cidades ou dos bairros que ocupam e, assim, atuam na transformação e no enriquecimento da sociedade à sua volta”, diz. Alexandre Martins Fontes também explica como funcionaria a Lei Cortez, em tramitação, fala sobre o comércio de livros pela internet, e da relação entre editoras e livrarias.
JC - Um manifesto a favor das livrarias tem um pressuposto. Qual a importância das livrarias, de um modo geral, na atualidade?
Alexandre Martins Fontes - As livrarias são locais de encontro onde cada um de seus frequentadores tem vez e voz. Elas acolhem a vida cultural das cidades ou dos bairros que ocupam e, assim, atuam na transformação e no enriquecimento da sociedade à sua volta. Pobre do país que não pode contar com uma ampla rede de livrarias. Neil Gaiman, respeitado autor inglês, diz que uma cidade sem livrarias pode até se considerar uma cidade, mas ela sabe que não está enganando ninguém.
JC - E para o país, num contexto como o brasileiro?
Alexandre Martins Fontes – Acabei de voltar de Belém, onde fui visitar a Feira Pan-Amazônica do Livro. Por ocasião dessa visita, fui conhecer a recém-inaugurada Livraria Travessia. Fiquei entusiasmado ao ver o trabalho realizado pelo Pedro Gama e por sua jovem equipe de profissionais. A Travessia é um sucesso de público e de vendas e faz de Belém uma cidade mais interessante, mais inteligente e mais sofisticada. O Brasil precisa urgentemente de mais livrarias como a Travessia nas ruas de suas cidades.
JC – Mas há muitas cidades com poucas livrarias. Quais as principais dificuldades para esse tipo de empreendimento no Brasil? E o que pode ser feito para superá-las?
Alexandre Martins Fontes – Há muito tempo, o Brasil vive uma trágica realidade: uma parcela importante de nossas cidades não conta com uma única livraria. A novidade é que se não abrirmos os olhos para o que vem ocorrendo no mercado livreiro, essa situação só irá se agravar. São muitas as razões que explicam as dificuldades enfrentadas pelas livrarias brasileiras, a começar por nossa crônica e vergonhosa desigualdade social.
JC - O que é a Lei Cortez, e por que sua aprovação e vigência são necessárias?
Alexandre Martins Fontes – Países como Argentina, Portugal, Espanha, Itália, França, Alemanha, México, entre muitos outros, contam com leis que estabelecem regras para os descontos praticados pelo mercado livreiro. Essas leis foram criadas para proteger e fortalecer as livrarias locais. A Lei Cortez é a versão brasileira dessas leis. Em poucas palavras, ela estabelece que títulos lançados nos últimos 12 meses não sejam vendidos com descontos superiores a 10%. Para informação dos leitores do Jornal do Commercio, o Brasil lança aproximadamente 13.000 novos títulos por ano. Ao longo de 2022, foram comercializados mais de 230.000 títulos em nosso país. Ou seja, a regra proposta pela Lei Cortez atingirá menos de 6% dos livros à disposição do consumidor brasileiro. Em outras palavras, mais de 94% dos títulos publicados no Brasil não serão afetados pela lei.
Por que, então, a aprovação dessa lei é tão importante? Apesar dos lançamentos representarem menos de 6% dos títulos comercializados, eles, lançamentos, têm um papel primordial no dia a dia de uma livraria. Na medida em que todas as livrarias do país (de norte a sul, grandes ou pequenas) comercializarem os lançamentos em pé de igualdade, todas sairão ganhando. Todos os países onde leis semelhantes estão em vigor possuem comprovadamente uma rede de livrarias forte, saudável e vibrante, que é tudo o que desejamos para o Brasil.
JC - A venda online trouxe facilidades, mas também dilemas para as editoras, gerando comportamentos e práticas que enfraquecem as livrarias, como o Sr. aponta no manifesto. A questão é mais da ética do setor, ou depende de regulamentação específica?
Alexandre Martins Fontes – Num país continental, muito mal servido por livrarias, a venda online cumpre um papel da maior importância. Inquestionavelmente, a venda online permite que os leitores brasileiros tenham um maior acesso aos livros publicados no país. Dito isso, não podemos permitir que a venda online destrua o ecossistema do livro. Todos perdemos quando não há diversidade de livrarias e quando a venda de livros fica concentrada nas mãos de uma ou duas empresas. Quando o assunto é livros, quanto maior a concorrência, quanto maior o número de livrarias espalhadas pelas cidades, melhor servida estará a sociedade. Quem tem o privilégio de viver num país que se preocupa com a sobrevivência das pequenas livrarias, vive num ambiente onde impera a liberdade de opinião e de expressão.
JC - Como as editoras podem contribuir, efetivamente, para apoiar as livrarias?
Alexandre Martins Fontes – As livrarias não vivem sem as editoras. Da mesma forma, um mercado editorial saudável depende necessariamente de livrarias fortes e competentes. Estamos todos no mesmo barco. Não conheço uma única editora que se posicione aberta e publicamente contra as livrarias brasileiras. No entanto, infelizmente, não são poucos os exemplos que sinalizam um descompasso entre palavras e ações. Darei aqui um único exemplo: sempre que uma editora, através do seu site, vende seus livros por preços diferentes daqueles que ela, editora, estabeleceu, ela está contribuindo para o fechamento de mais uma livraria brasileira. Isso, definitivamente, não pode acontecer. Sem livrarias não existem editoras. Sem editoras não existem livros. Sem livros não se faz um país.
JC - O que as livrarias estão fazendo para regular o mercado, mesmo sem a legislação? Como o engajamento pode surtir bons efeitos?
Alexandre Martins Fontes – Recentemente, as principais livrarias e distribuidoras brasileiras assumiram o compromisso de não vender livros lançados nos últimos seis meses com descontos superiores a 10%, numa tentativa de colocar a Lei Cortez em prática, antes mesmo de sua aprovação. Estou convencido de que, em breve, teremos a adesão da maioria absoluta das livrarias brasileiras a essa luta. É um primeiro passo na direção de um mercado mais organizado, mais justo e mais saudável.
JC - E qual o papel dos leitores nesse cenário?
Alexandre Martins Fontes – É urgente pensar nos benefícios proporcionados por uma vasta rede de livrarias nas ruas de nossas cidades. Convido os leitores brasileiros a frequentarem mais suas livrarias de bairro. Afinal, a quem interessa um país sem livrarias? A quem interessa um país sem editoras e sem leitores? Queremos um país ainda mais injusto e mais desigual do que já temos, ou sonhamos e trabalhamos por um Brasil mais democrático, mais educado e mais preparado para os desafios do futuro?