Transporte público em crise: em Pernambuco e no País, ônibus e metrôs seguem em segundo plano
Série de reportagens do JC vai abordar os principais problemas e desafios do transporte público do Grande Recife numa relação com o País
O transporte público da Região Metropolitana do Recife padece. Mais uma vez e novamente. Conseguiu superar em parte a crise econômica provocada pela pandemia de covid-19, que impactou o setor nacional e mundialmente, mas segue com problemas estruturais que não conseguem ser vencidos. Não importa a gestão política. O PSB não conseguiu em 16 anos à frente da coordenação do sistema, e o atual governo do PSDB também não tem avançado como se esperava e deveria.
O transporte público do Grande Recife e da maioria das metrópoles brasileiras parou no tempo. Ficou velho, desatualizado. Não se modernizou. Segue com problemas ultrapassados, inimagináveis com a modernidade do mundo atual. Por isso, mais afastam do que aproximam o passageiro.
Não é à toa que dados oficiais mostram que os sistemas de ônibus do País estão perdendo quase 20 mil passageiros por dia, pelo menos desde 2014. Houve uma recuperação no pós-pandemia, mas o sentimento do usuário é de que tudo continua ruim e só usa quem não tem outra opção. No Recife, no Grande Recife, em Pernambuco e no Brasil inteiro.
Os dados de perda de passageiros fazem parte do Anuário NTU 2023-2024, elaborado pela Associação Nacional das Empresas de Transporte de Transportes Urbanos (NTU). Em 2023, os ônibus urbanos transportaram menos 19,1 milhões de passageiros equivalentes (pagantes) por dia, em relação à quantidade transportada em 2014.
Em comparação a 2019 - antes da pandemia de covid-19 -, 2023 fechou com uma queda de 25,8% da demanda de usuários. Segundo o Anuário da NTU, isso significa que, nos últimos quatro anos, um em cada quatro passageiros deixou de utilizar o transporte coletivo por ônibus nas nove capitais e Regiões Metropolitanas pesquisadas - entre elas o Recife.
Essa leitura vale tanto para os ônibus como para o Metrô do Recife. O transporte metropolitano sobre trilhos, aliás, só perdeu passageiros e viu sua demanda cair quase na metade com a passagem cara e o serviço ruim, com quebras, lentidão e perda da confiabilidade junto ao passageiro. Mesmo sendo fundamental para o deslocamento de quase 200 mil pessoas por dia e atendendo ao Recife e a três dos maiores municípios da RMR: Camaragibe, Jaboatão dos Guararapes e Cabo de Santo Agostinho.
SEM AUMENTO DE PASSAGEM, O QUE É BOM PARA O PASSAGEIRO, MAS SEM MELHORIAS NO SISTEMA
No caso dos ônibus, a ausência de reajustes das passagens e a unificação dos anéis tarifários, extinguindo o A, usado por 20% dos passageiros da RMR, foram importantes ações para evitar a fuga de mais clientes e garantir a entrada de outros. Mas não significaram melhorias na qualidade do serviço. O benefício foi mais político para o governo do Estado do que prático para o setor, seja para a maioria dos passageiros, seja para os operadores.
Já o Metrô do Recife segue sem investimentos efetivos para recuperar sua infraestrutura física e, principalmente, rodante, ou seja, os trens. Vem sobrevivendo - mesmo na gestão federal do PT - com pouco mais de 50% dos recursos necessários apenas para o custeio da operação e com o processo de operação privada cada vez mais certo. Enquanto os passageiros pagam uma tarifa mais cara que a do ônibus e, na maioria das viagens, sofrem com o calor e a lentidão dos trens.
O JC, via Coluna Mobilidade, foi conversar com passageiros, motoristas, operadores, gestores e especialistas sobre a situação atual do Sistema de Transporte Público de Passageiros da RMR (STPP/RMR) e do Metrô do Recife, dois sistemas de transporte que têm uma ligação praticamente umbilical no caso do Grande Recife. Abordou problemas e buscou soluções para construir a série de reportagens Transporte público em crise, que será publicada em várias reportagens nos próximos dias.
VELHOS PROBLEMAS E SOLUÇÕES VELHAS QUE NUNCA VIRAM REALIDADE
O transporte por ônibus sofre com a eterna falta de prioridade viária para se deslocar diariamente levando e trazendo 1,6 milhão de pessoas pelo Grande Recife. Os ônibus, aliás, respondem pela maioria dos deslocamentos da população nas 14 cidades da RMR. E, mesmo assim, nada parece sensibilizar as prefeituras para que implantem faixas exclusivas em suas cidades e, até, integrem-as em corredores metropolitanos.
Em coletivos na sua maioria lotados nos horários de pico - que são os horários que o trabalhador precisa pegar o transporte - e sem previsão de tempo de viagem, muitas vezes ficando preso em congestionamentos, o passageiro só pensa em fugir, em abandonar o serviço.
Quem está dentro quer sair, literalmente. Ainda mais quando, fora do transporte coletivo, há diversas opções de deslocamento, tanto caras como baratas, mesmo que perigosas, como acontece com os aplicativos de transporte de passageiros com motos, como o Uber e 99 Moto.
“Esse é o sentimento. Nos sentimos pagando por algo que não melhora. Nunca. Entra governo, sai governo e não melhora. E desde a pandemia de covid-19 piorou muito. Por isso o Uber e o 99 Moto crescem tanto. Viraram uma alternativa ao transporte público ruim, essa é a verdade. É perigoso? É. Dá medo de usar? Dá, mas muitas vezes é melhor correr o risco porque é rápido”, desabafa o garçom Felipe Dias da Silva, que mora em Paulista, no Grande Recife, e trabalha no Centro do Recife, levando, quase sempre, mais de duas horas de deslocamento diário.
OS TRÊS PRINCIPAIS DESAFIOS DO SISTEMA DE ÔNIBUS
Em conversas com pessoas que atuam no setor de transporte público coletivo e urbano, pelo menos três grandes desafios foram colocados como urgentes para o sistema de ônibus do Grande Recife. Desafios, aliás, que também estão colocados para muitas metrópoles brasileiras que dependem dos modais coletivos de transporte para conseguirem se manter como cidades que ainda se movem. Até porque, muita gente não acordou para o fato de que, quanto mais pessoas deixam o transporte público, pior fica o trânsito nas ruas e avenidas.
O custeio do transporte, a prioridade viária e o combate à evasão de receita seriam os três principais desafios atualmente. O custeio da operação seria a base de todos os problemas e o principal caminho para encontrar as soluções. Isso porque transporte público custa dinheiro e o passageiro não suporta mais pagar por ele sozinho. É preciso que sejam criadas fontes externas de receita e subsídios diretos para garantir um nível do serviço prestado ao passageiro.
“A remuneração do custo de operação está muito abaixo da realidade e tem gerado uma degradação do sistema. Ele não se moderniza porque o empresário não investe na frota, provocando a queda da qualidade do serviço e, cada vez mais, a perda de demanda. A arrecadação cai porque o passageiro fugiu e tudo vira um ciclo vicioso”, avalia uma fonte, de forma sucinta, sobre a atual situação do sistema de transporte público do Grande Recife e também do País.
Na verdade, um ciclo vicioso que já acompanha o setor faz décadas, mas que ganhou um potencial perigoso após a pandemia. Na visão dos operadores, existe muita insegurança operacional, tanto para as concessionárias - que têm contratos licitados -, mas, principalmente para as permissionárias, que representam 75% da operação de transporte da RMR. São nove empresas, das quais apenas duas têm contratos licitados.
O entendimento é que, sem investimentos, o setor não vai sair dessa crise. E esse investimento só virá com a segurança jurídica e operacional. Até mesmo as duas concessionárias públicas do sistema - Mobibrasil e Conorte - têm recebido os subsídios com atraso e em valores que o setor define como defasados.
Os aditivos aos contratos com as concessionárias, inclusive, não teriam sido assinados desde o início de 2024, ampliando o sentimento de insegurança. Do outro lado, as empresas permissionárias, sem qualquer tipo de contrato ou segurança, assistindo a tudo e segurando os investimentos.
“Infelizmente, o sistema de transporte público do Grande Recife está estagnado. Nada avança. Todos vão mal: passageiros, operadores e gestores. O governo do Estado parece perdido, tem atrasado pagamentos e não avança no modelo de remuneração. Nem mesmo os contratos das concessionárias foram aditivados. O setor está muito inseguro e o passageiro insatisfeito porque não vê melhorias”, afirma um operador.
“O cliente está insatisfeito, as concessões e as permissões estão em decadência e os gestores estão sufocados”, resume outro operador.
PRIORIDADE VIÁRIA AVANÇOU MUITO POUCO E PRECISA SER METROPOLITANA
Em 2019, levantamento oficial da NTU apontou que o País tinha na época uma extensão de 1.515,4 km de faixas exclusivas, implantadas em 43 cidades. Os corredores de ônibus contavam com 206 empreendimentos presentes em 63 cidades, resultando em um total de 1.216,4 km de extensão. Além de 1.671,4 km de corredores de sistemas BRT. Para enfrentar efetivamente o desafio do trânsito, porém, o total de faixas exclusivas, corredores e sistemas BRT deveria contemplar cerca de mais 9.000 km de obras, distribuídos nas 112 cidades brasileiras com mais de 250 mil habitantes.
De acordo com o Instituto de Energia e Meio Ambiente (IEMA), as faixas exclusivas são ideais para o estágio inicial da priorização do transporte coletivo, além de serem mais economicamente viáveis. “Não se verifica qualquer barreira física, apenas o uso da sinalização horizontal e vertical para orientar condutores a utilizar as faixas adequadas para cada tipo de veículo. Com implantação e operação simples, essa solução mostra-se financeiramente viável a um grande número de cidades, uma vez que são necessários poucos recursos e também pouco tempo para adotá-la”, diz um documento da entidade.
Estudos da NTU, de 2013, mostram que a implantação das faixas é viabilizada em curto prazo (entre 1 e 6 meses), e o resultado atende de imediato às expectativas da população. Além disso, os investimentos são de baixo custo, variando de R$ 100 mil a R$ 500 mil reais por quilômetro. Os resultados contribuem positivamente para a mobilidade da cidade e são sentidos na redução do consumo de combustível, das emissões de poluentes e na diminuição do tempo de viagem.
EVASÃO DE RECEITA É UM DOS GRANDES DESAFIOS PARA A OPERAÇÃO
O terceiro desafio é a evasão do sistema de transporte, que tem provocado a desmoralização do serviço no Grande Recife. Os pulos de catraca, as invasões pela porta traseira dos ônibus e das estações do Sistema BRT aumentaram demais no pós-pandemia e hoje representam entre 11% e 15% da receita do sistema, gerando um prejuízo estimado em R$ 20 milhões por mês, segundo dados oficiais do Estado.
Catracas elevadas - que em nada contribuíam para o conforto dos passageiros - chegaram a ser testadas por um curto período em algumas linhas do Grande Recife, mas o teste foi suspenso por determinação do Ministério Público de Pernambuco (MPPE) depois que uma mulher ficou com a cabeça presa no equipamento.
Apenas as catracas normais passaram a ser usadas também na porta traseira dos coletivos, em mais uma tentativa de inibir as invasões. Mas não têm resolvido o problema, que segue gritante nos ônibus do Grande Recife.
QUEM PAGA A CONTA? O PASSAGEIRO
E, no meio de todos esses problemas está o passageiro - que é o que importa em toda a cadeia do transporte coletivo, ainda mais nos sistemas públicos. E um passageiro que está sempre pronto para fugir, atraído pelas inovações da mobilidade urbana que ainda não lhe é oferecida nos ônibus, metrôs e trens.