VIOLÊNCIA POLICIAL

O desabafo do trabalhador que ficou cego após tiro de PM no Recife; Após um ano, não houve punição

"Toda vez que olho no espelho, vem aquela dor", conta o arrumador de contêineres Jonas Correia, que foi ferido mesmo sem participar de protesto

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Raphael Guerra

Publicado em 29/05/2022 às 10:00
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Cicatrizes e o trauma permanecem forte na rotina dos dois trabalhadores que perderam a visão após serem atingidos por tiros disparados por policiais militares durante um ato pacífico contra o governo Bolsonaro, na área central do Recife. O caso completa um ano neste domingo (29). Até hoje, os acusados não foram punidos pelo governo de Pernambuco. 

"Toda vez que olho no espelho, vem aquela dor. Não nasci assim. Graças a Deus tenho minha esposa e meus dois filhos. São eles que me fazem ficar de pé", conta o arrumador de contêineres Jonas Correia de França, de 30 anos.

Ele havia acabado de largar e, ao visualizar a confusão entre PMs e manifestantes, na Ponte Princesa Isabel, telefonou para a esposa. Avisou que iria se atrasar. Foi quando foi atingido no olho direito pelo tiro de elastômero (bala de borracha). Os PMs não prestaram socorro. A vítima lembra todos os dias aquela tarde do dia 29 de maio de 2021.

"Não voltei a trabalhar, sobrevivo de um salário mínimo que o governo está pagando. Queria trabalhar com qualquer coisa. Ganhar um pouco mais para poder sair com minha família. Ter algum lazer", diz. 

Além do salário mínimo vitalício, o governo do Estado também pagou uma indenização a Jonas. O valor, por questão de segurança, não será informado.

O terceiro sargento do Batalhão de Choque Reinaldo Belmiro Lins, acusado de disparar o tiro em Jonas, foi indiciado criminalmente. Atualmente, é réu pelo crime de lesão corporal grave, com o agravante de o crime ter sido cometido por um militar. A pena pode chegar a cinco anos de prisão. O processo está em fase de audiências de instrução e julgamento.

Na época dos fatos, a Secretaria de Defesa Social (SDS) determinou o afastamento cautelar do policial por 180 dias. Questionada, a SDS não quis informar se o PM voltou às atividades ou se houve renovação do da medida cautelar. A Corregedoria não concluiu o processo administrativo que pode resultar na exclusão de Reinaldo da corporação.

OUTRA VÍTIMA

HUGO MUNIZ/DIVULGAÇÃO
NA JUSTIÇA Daniel Campelo, que perdeu a visão o olho esquerdo, quer uma indenização milionária - HUGO MUNIZ/DIVULGAÇÃO

O adesivador Daniel Campelo da Silva, 51 anos, passava pela Ponte Duarte Coelho, durante o protesto, quando foi atingido no olho esquerdo e perdeu a visão. "As condições dele são muito difíceis. Não está trabalhando e ainda vai passar por outra cirurgia", explica o advogado de Daniel, Marcellus Ugiette.

Ao contrário de Jonas, Daniel não fechou acordo com o governo do Estado. Desta forma, entrou na Justiça com o pedido de indenização por danos morais e materiais, segundo Ugiette.

"Ao mesmo tempo, pedi ao juiz a concessão da tutela antecipada para que Daniel recebesse dois salários mínimos por mês. O juiz concedeu, mas o Estado recorreu. Na semana passada, após meses sem pagar, a Secretaria Estadual de Administração entrou em contato e falou que iria pagar."

No último mês de abril, o PM que atirou no adesivador foi indiciado por lesão corporal gravíssima (cuja pena pode chegar a oito anos de prisão) e por omissão de socorro (seis meses de detenção ou multa). Outros oito policiais do Batalhão de Radiopatrulha também foram indiciados por omissão de socorro. Os nomes deles não foram revelados. A SDS se negou a responder se eles ainda estão afastados das ruas.

No final do mês passado, a Corregedoria da SDS concluiu o procedimento que apurou a ação de PMs do Batalhão de Radiopatrulha por uso de spray de pimenta contra a vereadora Liana Cirne (PT).

O soldado Lucas França da Silva, que estava na viatura policial, foi punido com 21 dias de detenção. Meses antes, um inquérito policial também foi concluído, mas detalhes não foram revelados.

MAS QUEM DEU A ORDEM?

DIEGO NIGRO / ACERVO JC IMAGEM
DE SAÍDA À frente da corporação desde fevereiro de 2017, o coronel Vanildo Maranhão deixa o cargo em momento de extrema turbulência e insatisfação entre os militares - DIEGO NIGRO / ACERVO JC IMAGEM

Até hoje, o governo de Pernambuco não esclareceu quem, de fato, deu a ordem para que os policiais militares avançassem contra os manifestantes no ato pacífico. A coluna Ronda JC solicitou uma entrevista ao secretário de Defesa Social, Humberto Freire, mas ele não quis.

Freire assumiu a titularidade da SDS após a exoneração do delegado federal Antônio de Pádua, dias depois da ação violenta da PM. O novo secretário se apressou em fazer uma coletiva e, diante dos holofotes, chegou a prometer transparência sobre o caso.

Na época, um documento interno da Polícia Militar, revelado em primeira mão pela coluna Ronda JC, mostrou que a ordem de dispersar os manifestantes teria sido dada pelo então comandante geral da PM, Vanildo Maranhão, que também perdeu o cargo dias depois. Ele acabou transferido para a reserva remunerada com salário-base de mais de R$ 23 mil, segundo Portal de Transparência. Vanildo nunca veio a público dar sua versão sobre o caso.

 

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