Dos Estados Unidos, o médico virologista Ernesto Marques, professor da Universidade de Pittsburgh (EUA) e pesquisador da Fiocruz Pernambuco, conversou com Cinthya Leite, titular desta coluna, sobre os desafios impostos pela atual fase da epidemia de covid-19 no Estado.
JC – Pernambuco entra na segunda semana de quarentena mais rígida, e o nível de isolamento se mantém na casa dos 50%. Além disso, pela escassez de testes, não há certeza do número de pessoas que já foram infectadas pelo novo coronavírus. Como pensar numa volta às atividades diante desse cenário? Seria importante ter ideia da prevalência da doença para dar um norte a essa retomada?
ERNESTO MARQUES – Sim, é isso mesmo: dar um norte. Do ponto de vista epidemiológico, o estudo de soroprevalência é como se fosse uma bússola, que nos mostra como vamos conseguir nos orientar durante uma epidemia e como devemos agir. Se não há um conhecimento da taxa basal de infecção e de uma taxa de ataque com certa periodicidade, hoje e daqui a três meses, fica difícil prever como tudo vai evoluir para, dessa forma, ser possível pensar em medidas a ser tomadas. Além disso, se temos informação sobre prevalência e taxa de ataque, fica mais fácil desenvolver ou aprimorar os modelos matemáticos.
JC – Como essas previsões podem ser aprimoradas para se prever a dinâmica da covid-19?
ERNESTO MARQUES – Não há como ficar obtendo essa informação em tempo real, mas a modelagem matemática ajuda se foram usados parâmetros precisos, ao invés de parâmetros deduzidos, que são aqueles que levam a uma grande chance de erro porque, às vezes, são baseados em dados de outros países e de lugares. A ideia do modelo é poder ajudar a prever o futuro com uma certa antecedência, mas não é como uma previsão do tempo para amanhã; é para 15 dias ou um mês. Mas, para isso, são necessários dados precisos, o que pode vir com o estudo de soroprevalência.
JC – Isso mostra o quanto precisamos da ciência para termos mais segurança durante um processo de retomada...
ERNESTO MARQUES – São esses estudos que evitam o achismo e o debate político, a fim de que tenhamos discussões baseadas em dados, e não em mensagens que são compartilhadas pelo WhatsApp, que é a forma como a população aparentemente vem se educando. No momento em que se tem uma pesquisa séria, e até mais de uma, feitas por grupos diferentes, principalmente para legitimar os resultados, os países conseguem maior adesão das pessoas. O que, neste momento, seja o maior déficit é a confiança nas instituições públicas, perdida por completo. E se não há confiança, quando as pessoas se sentirão seguras para voltar a trabalhar, a sair, a passear? Os países que mais prosperarão são aqueles que encontrarão uma forma de funcionar sem adicionar a isso um risco de transmissão.
JC – Estamos muito longe desse momento seguro?
ERNESTO MARQUES – É tudo mais difícil até se existir uma vacina, que não chegará tão rapidamente; aliás, diria que não chegará para todo mundo logo. Poderemos ter, daqui a um ano, uma vacina que vai nos dar alguma noção sobre proteção. E ainda sobrarão muitas perguntas: quanto tempo vai durar essa proteção? Seis meses? Um ano? De imediato, não saberemos disso. Basta lembrarmos das vacinas contra dengue, cujos níveis de proteção não foram perfeitos. No caso do imunizante da Sanofi, descobriu-se que, após dois anos com um milhão de crianças imunizadas, as pessoas vacinadas que nunca tinham tido dengue, têm um risco maior de ter dengue hemorrágica (ao se infectarem naturalmente em algum momento da vida após a imunização). Isso não é algo descartado para covid-19; é uma possibilidade de ocorrer após a vacinação. A notícia boa é que a quantidade de investimento é enorme para o desenvolvimento da vacina. Há umas 50 com estudo em fase 1, 2 ou 3 aprovados. Isso não significa que se esteja recrutando já as pessoas. É provável que alguma dessas se mostre com alto grau de eficácia, mas não vai dar para saber logo se teremos que ser vacinados a cada seis meses, de ano em ano ou só uma vez para o resto da vida. O nosso organismo precisa de tempo para dar essa resposta.
JC – Vemos muitas notícias sobre a chegada de uma vacina contra covid-19 em setembro deste ano ainda. É mesmo possível ou seria alimentar falsas esperanças?
ERNESTO MARQUES – Prever uma vacina para setembro deste ano é uma temeridade. Acredito que é plausível para daqui a um ano. Talvez em maio do ano que vem a gente tenha uma vacina que assegure algum efeito a curto prazo. Não saberemos quanto tempo essa proteção durará nem mesmo os efeitos a longo prazo. Ela pode mostrar uma proteção e, após um ou dois anos da aplicação, o nível de proteção cair, o que pode favorecer o risco aumentado de se ter uma forma mais grave da doença. Vamos demorar a saber disso.
JC – Sem vacina e sem testes suficientes para conter a epidemia, o isolamento social é a forma mais segura que temos de enfrentamento à covid-19?
ERNESTO MARQUES – Eu diria que é a melhor opção do momento. É um “remédio” caro, mas não existe outra alternativa. Infelizmente a situação é esta. Espero que, passada a crise, haja mais investimento em vigilância de doenças emergentes, o que é feito de maneira antiquada. Estamos sempre correndo atrás do prejuízo. Eu lembro que, na epidemia de zika (em 2015), muitas pessoas diziam que teríamos vacina em um ano. Passaram-se cinco anos e nada.
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