Precisamos falar sobre a perda prematura de tantos Joãos
Segundo dados de 2020 do Ministério da Saúde (MS), todos os anos, 15 milhões de bebês nascem prematuramente no mundo todo, o que representa mais de um em cada dez bebês
Por Eliza Brito, especial para o JC
“Eu tive que fazer o parto de um bebê que, ou já estava morto, ou ia morrer. Passar por toda a agonia de um parto normal, de esperar a hora, empurrar, ter o dano pós-parto foi, com certeza, a coisa mais difícil que eu tive que fazer na minha vida. Foi muito, muito triste”. O depoimento é da diretora de marketing Luciana Oliveira, de 36 anos. Eddie, nome do bebê escolhido pela pernambucana que vive na Suécia desde 2017, tem em comum com João Miguel, filho do comediante Whindersson Nunes, o fato de ter nascido prematuramente e não ter resistido.
A repercussão da perda do artista e da sua noiva, Maria Lina, no último dia 31 de maio, foi enorme, mas permaneceu na superficialidade da tragédia pessoal de uma celebridade, contrastando com a universalidade do tema. Segundo dados de 2020 do Ministério da Saúde (MS), todos os anos, 15 milhões de bebês nascem prematuramente no mundo todo, o que representa mais de um em cada dez bebês. A Organização Mundial da Saúde (OMS) define o nascimento prematuro como aquele que ocorre antes de 37 semanas completas de gestação. No Brasil, mais de 12% dos nascimentos acontecem nessas condições. Dentro dos tipos de prematuridade, os casos extremos são dos bebês que nascem com menos de 28 semanas. Há ainda os muito prematuros, com nascimento entre 28 e 31 semanas; e os moderados, que nascem entre 32 e 36 semanas de gestação.
Os dados demonstram que, muito além de um assunto pessoal, essa é uma questão de saúde pública, já que atinge um número considerável de pessoas no mundo todo e exige muito dos serviços de saúde. Um prematuro precisa de cuidados especiais na Unidade de Terapia Intensiva (UTI), o que possibilita, mas não garante a sobrevivência dele. “Uma UTI bem equipada pode conseguir a sobrevivência do bebê e fazer com que ele ganhe peso. Porque quando ele nasce prematuro, a gente tem que ter cuidado com o desenvolvimento dos órgãos e com o ganho de peso. Numa UTI, ele vai ter todo esse suporte, mas isso não evita que ele possa ter infecções e uma série de complicações”, explicou a médica ginecologista e obstetra Nelma Holanda.
A discussão sobre os perigos da prematuridade e as formas de prevenção pode ajudar a salvar vidas e evitar o sofrimento de muitas famílias. São muitos os motivos que podem levar a um parto prematuro. No caso de Luciana Oliveira, o bebê teve pneumonia. “No hospital, eles fizeram uma investigação e falaram que o bebezinho teve uma pneumonia. Não sabem o porquê. Pode ter sido alguma coisa que eu comi ou até uma infecção urinária”, contou a diretora de marketing. De acordo com a médica Nelma Holanda, a prematuridade é multifatorial, podendo ocorrer por causas obstétricas, de alterações hormonais ou no útero, por infecções, diabetes, hipertensão arterial, cardiopatias, doenças autoimunes ou da tireoide. “E tem ainda os fatores socioeconômicos: a falta de higiene, gestação abaixo de 15 ou acima de 35 anos, dieta desequilibrada, desnutrição, consumo de drogas ilícitas, tabagismo. Há uma série de causas, mas com um pré-natal bem feito é possível identificar fatores que podem levar à prematuridade para que se possa tentar solucionar”, ressaltou a obstetra.
E é exatamente no pré-natal que outro assunto que atinge um percentual significativo de mulheres no mundo inteiro é muitas vezes negligenciado: o abortamento espontâneo. De acordo com dados do Ministério da Saúde de 2019, o evento ocorre em aproximadamente 10 a 15% das gestações no globo. Sem contar que ainda pode aumentar o risco de aborto espontâneo em gestações subsequentes. O abortamento espontâneo pode ser precoce, quando a perda do feto acontece antes da 12ª semana de gestação, ou tardio, quando esta perda é sofrida entre a 12ª e a 20ª semana de gravidez. Independentemente do tipo, é um evento comum, mas pouco discutido pela sociedade.
“Existe um tabu muito grande e é preciso que a gente amplie o debate porque atinge muita gente. É um tema íntimo, mas ao mesmo tempo é coletivo, porque mexe com toda sociedade. Enfim, a vida e a morte. Então toca todo mundo. É um problema de saúde pública, e não é tratado como tal. Isso é o mais triste”, destacou a jornalista Mariana D´Emery, de 38 anos, que passou por quatro abortamentos espontâneos, três antes de ter o primeiro filho. Além de lidar com as dores físicas e psicológicas da perda, a jornalista pernambucana, que vive na França há oito anos, precisou encarar a falta de apoio nos serviços de saúde e dentro da universidade. O seu segundo aborto aconteceu enquanto ela fazia o mestrado em Cooperação Internacional para Desenvolvimento de Políticas Públicas nos Países do Sul, na Science Po Bordeaux.
“Na hora do aborto, eu estava passando pela prova oral, com júri, do primeiro ano de mestrado. Senti uma cólica muito grande e comecei a sangrar. Eu falei para o professor que precisava ir ao banheiro e ele disse que eu não podia sair. Expliquei que provavelmente estava tendo um aborto e foi aquele choque na faculdade. Saí no meio da prova, e eles não souberam lidar com isso. Porque eles viram todo o meu estado, eu já tinha respondido várias questões, e eles não levaram nada em consideração. Precisei estudar tudo de novo, passando pelo processo de luto, para fazer uma outra prova oral, na qual eu revivi a sensação da perda. Fiquei muito abalada emocionalmente na hora da avaliação. Para eles era uma besteira, mas para mim era uma vida. Essa falta de acolhimento na universidade também me doeu muito”, contou a jornalista.
Assim como Mariana D´Emery, a advogada Luísa Brito, de 31 anos, relatou uma experiência de violências por parte da universidade, já que viveu o período pós-abortamento e o início de sua segunda gestação quando realizava o mestrado em Ciências Sociais pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), em Natal, e por parte dos serviços de saúde. “Uma coisa que me chamou muito a atenção é que eu tenho sangue O negativo e precisava tomar uma injeção necessária para casos em que a mãe tem o sangue RH negativo porque, se em gravidezes futuras o bebê tiver o RH positivo, não haverá problemas. Na Unimed de Caicó não tinha a injeção e a médica prescreveu para que eu pudesse tomar na rede pública. E, mesmo com a solicitação da médica, eu fui super mal atendida na maternidade. Ficavam me jogando de um lado para o outro, me olhando torto, perguntando como tinha sido o abortamento e eu tive que ir à Secretaria de Saúde para conseguir que me dessem a injeção no hospital”, contou a caicoense.
Autoculpabilização, como lidar
Outra experiência comum a muitas mulheres que sofreram um abortamento espontâneo é o sentimento de culpa por estar passando pela situação. A mulher se questiona se foi por algum exercício físico que fez, por algo que comeu, por pensamentos e questionamentos que teve e até pela própria personalidade. Segundo a médica Nelma Holanda, as principais causas do abortamento espontâneo são as anormalidades cromossômicas, que chegam a 50% dos casos. “Geralmente é porque os embriões não se desenvolveram bem e eles não iriam sobreviver. É como se fosse até uma seleção natural”, destacou. Mas a cultura de culpabilização da mulher na nossa sociedade e a falta de debate sobre o tema ajudam a reforçar um sofrimento que não precisaria recair com tanta intensidade no colo das mulheres.
Para as psicanalistas Lia da Fonte e Deborah Foinquinos, a discussão sobre o assunto ajuda na superação do trauma. “A palavra é o instrumento de que dispomos para abordar e favorecer a elaboração do sofrimento humano. Abrir um espaço de discussão sobre as experiências da mãe frente à perda prematura de um bebê favorece a criação de espaços de fala e redes de apoio para essas mulheres. Possibilita identificar lutos que se cristalizam, ajuda que se mantenha o respeito ao tempo de luto necessário e singular a cada uma, e propicia acolhimento ao sofrimento”, explicou Lia da Fonte, que também é médica.
A ausência desses espaços de discussão, tanto nos serviços de saúde quanto nos outros setores sociais, dificulta a compreensão do trauma e, consequentemente, a sua superação. A maioria das sociedades debate pouco o tema da morte, já que o assunto pode provocar angústia e horror, como também destacaram as psicanalistas Lia da Fonte e Deborah Foinquinos. Quando o assunto é a morte prematura de um bebê, seja ela por um abortamento espontâneo ou pelo nascimento prematuro, o silenciamento do debate demonstra a dominância desse medo. “Uma das razões do silenciamento sobre o tema da morte prematura de um bebê pode estar relacionada à atualização de angústias arcaicas, da sensação de desamparo, da ameaça de morte vivenciada durante o próprio nascimento dos sujeitos em geral”, esclareceu Deborah Foinquinos, que também é psicóloga. E este silenciamento apenas aumenta a solidão das famílias e das mulheres enlutadas.
“Eu ouvi muitos conselhos do tipo: ‘vocês são um casal jovem, não foi nada, tudo vai passar’. Não só de pessoas distantes. Mesmo que seja com as melhores das intenções, não é a melhor coisa a se dizer depois que a gente sofre um aborto. Mas as pessoas ficam sem saber o que dizer, porque lidar com a morte é um tabu na sociedade, e isso é uma morte, é uma perda. Eu não consegui falar com ninguém que tinha vivido a experiência, precisei ir para uma psicóloga para poder entender tudo que estava passando”, comentou Mariana D´Emery. Com Luísa Brito não foi diferente. “Eu fui entrando numa solidão. Dois amigos foram muito importantes durante o processo, mas as pessoas têm muito receio de conversar sobre isso. Eu sentia falta de conversar abertamente sobre tudo que tinha acontecido”, contou a advogada. E comigo, a jornalista que vos escreve, foi bem parecido.
Uma experiência particular, e de tantas mulheres
Sofri um abortamento espontâneo em julho de 2020, em casa, com meu marido. Perdi muito sangue, senti muita cólica e fomos para a maternidade. Não foi preciso fazer curetagem. O feto tinha sido expelido em casa. Eu já sabia. Eu tinha sentido. A mulher sente. Devido à pandemia da Covid-19, meu marido precisou ficar do lado de fora do hospital. O peso da solidão que se impõe à mulher enlutada, mãe de alguém que não chegou propriamente a nascer, já começou daí. Estava fazendo o pré-natal na minha unidade de saúde do Porto, em Portugal, onde estamos morando, e em nenhum momento foi conversado sobre a possibilidade do acontecimento. O atendimento na maternidade, no dia do abortamento, foi atencioso, mas pontual. Não me aconselharam sobre acompanhamento psicológico, não me orientaram sobre procedimentos futuros. Apenas me foi receitado o remédio para a cólica, que era insuportável. Depois percebi que outras dores também estavam ficando insuportáveis.
Tive apoio do meu marido, também enlutado, da minha família, dos poucos amigos que sabiam que eu estava grávida, da terapia. Algumas das pessoas mais importantes para a compreensão do trauma foram exatamente essas mulheres que dividiram aqui as suas histórias. E algumas outras que preferiram não se expor. Mas nada disso me privou de escutar comentários violentos como: “cuidado com essa ansiedade, essa agitação, isso tem relação com tudo que aconteceu”. Ou o clássico: “tem problema não, daqui a pouco você está grávida de novo”. E, neste momento, eu estou grávida de novo, esperando meu Henrique. Nosso Henrique. Mas o meu bebê, Eddie, João Miguel, todos os bebês que Mariana, Luisa e tantas mulheres e famílias perderam e perdem todos os anos serão sempre parte da nossa memória e da nossa história. Por eles e por nós, abrimos esse diálogo.
*Eliza Brito tem 36 anos, é jornalista e doutoranda em História