Primeiros mil dias de vida são decisivos para saúde bucal das crianças
Cirurgião-dentista é um dos profissionais que têm contato com pacientes nesse período, que é valioso para prevenção de doenças como cárie
Os primeiros mil dias de vida (período que somam os 270 dias da gestação com os 730 dias subsequentes do bebê) representam uma fase importante não apenas para o desenvolvimento físico e mental, mas também para a saúde bucal. Evidências científicas demonstram que esse período deve ser visto como uma oportunidade valiosa para a prevenção das doenças bucais.
É isso mesmo: há uma máxima, validada pela pediatria moderna, que os especialistas (e também algumas famílias) sabem de cor: o comecinho da vida pode influenciar todo o restante dela. Esse momento inicial da nossa existência é tão importante que a ciência já reconhece os primeiros mil dias de vida como um intervalo de ouro, com poder para ditar o destino da criança não só em termos biológicos (crescimento e desenvolvimento), como também em questões intelectuais e sociais.
Nesse contexto, não podemos dar deixar de dar luz ao cirurgião-dentista, que é um dos profissionais da equipe da Estratégia de Saúde da Família que têm contato direto com os pacientes nos primeiros mil dias de vida. É um período valioso para a prevenção de doenças crônicas não transmissíveis (DCNT), com impactos ao longo da vida.
Cárie é uma doença crônica não transmissível
Diabetes, obesidade e hipertensão estão na lista das DCNTs. Mas não podemos deixar que ressaltar que o Comitê de Saúde Bucal da Organização Mundial de Saúde (OMS) reconhece a cárie e a doença periodontal como uma doença crônica não transmissível muito prevalente no mundo. Por isso, faz-se necessário criar estratégias para prevenção das DCNTs bucais e sistêmicas.
Entre as crianças, a cárie é o maior problema de saúde bucal e frequentemente traz outras comorbidades (problemas de saúde associados). O impacto dessa doença é imenso. Entretanto, é possível evitar a cárie com a adoção de hábitos saudáveis. É importante que os pequenos sejam orientados quanto à alimentação saudável e higienização.
Você pode estar se perguntando o que isso tem a ver com os primeiros mil dias de vida da criança - uma fase em que os dentes ainda estão bem novinhos (eles normalmente nascem entre 6 e 15 meses de idade). Mas há uma relação imensa entre cuidados desde a gestação e a prevenção de cáries. Afinal, é uma condição que pode ser prevenida com promoção do aleitamento materno, conscientização da família sobre os efeitos negativos do açúcar e da mamadeira (leite artificial), especialmente a noturna.
"O que precisamos é incentivar que a saúde bucal começa desde a gestação. E isso está bem estabelecido quando preconizamos os primeiros mil dias de vida. Devemos estimular que a mulher grávida siga cuidados para evitar desfechos negativos nessa fase da vida", destaca a cirurgiã-dentista Paula Valença, membro da Câmara Técnica de Odontopediatra do Conselho Regional de Odontologia de Pernambuco (CRO-PE).
O depoimento da cirurgiã-dentista nos leva a reforçar que, na gestação, estressores ambientais, como uma alimentação não saudável, exposição ao fumo e ao álcool, podem afetar o organismo como um todo de forma nociva, incluindo a saúde bucal.
"Evidências mostram que a doença periodontal (afeta os tecidos que sustentam os dentes, como a gengiva) leva a consequências negativas na gravidez, como pré-eclâmpsia (complicação grave da gestação caracterizada por hipertensão arterial e excesso de proteína na urina) e parto prematuro", alerta Paula.
Dentista no posto de saúde
Dessa forma, durante o pré-natal, as equipes de saúde bucal na Atenção Básica unem forças para atuar no início deste intervalo de ouro. "Esse é um momento ideal para orientarmos as famílias sobre a importância do leite materno, que é o melhor alimento para o bebê. Outro ponto que não deixamos de falar é que a saúde bucal ganhar muito se houver atraso da oferta de açúcar à criança", frisa a odontopediatra, que é mestre e doutora em Saúde da Criança e do Adolescente.
É dessa forma, segundo Paula, que se educa sobre o meio mais barato de tratar a cárie: "evitando". Nesse contexto, durante o pré-natal, o cirurgião-dentista deve fazer uma avaliação completa da gestante atendida pela Equipe de Saúde da Família, a fim de reconhecer a presença de possíveis fatores de risco, orientar e incentivar a adoção de práticas saudáveis no período gestacional.
É um caminho de conscientização para que a mulher grávida compreenda que as comportamentos inadequados, nessa fase da vida, podem levar a problemas bucais e no organismo como um todo.
Porta de entrada para saúde bucal no SUS, unidades básicas transformam sorrisos das crianças no Recife
"Desde o pré-natal na Atenção Básica, a gerente da unidade orienta uma consulta com a dentista, porque sabemos que problemas odontológicos, como infecções no dente, podem influenciar o parto prematuro e levar o bebê a nascer com baixo peso", diz a secretária de Saúde do Recife, Luciana Albuquerque, que é graduada em odontologia. "Desde a puericultura (consultas periódicas de uma criança para avaliação do desenvolvimento), de uma maneira próxima, a mãe já é orientada a levar o filho para criar vínculo com o dentista."
Com formação em saúde coletiva, Luciana recorre ao repertório de sanitarista para colocar em prática ações de prevenção, promoção e recuperação da saúde bucal da população. À frente da Saúde da capital pernambucana, ela reconhece a necessidade de cuidar de problemas de saúde bucal da comunidade, elaborar e executar programas de saúde, como também conscientizar e realizar ações preventivas.
A missão de Luciana, no universo da saúde bucal, tem sido desafiadora. Em 2021, início da atual gestão municipal, o Recife tinha 59% do território coberto pela atenção básica. "Agora, chegamos a quase 80%, com o compromisso de equiparar as equipes de saúde bucal com as de saúde da família. A gente tinha, em 2021, 39% de cobertura em equipes de saúde bucal. Estamos em 66%."
A secretária acrescenta que a meta é chegar, no fim deste ano de 2024, com 524 equipes de saúde da família e 524 equipes de saúde bucal.
Sem intervalo para almoço
Com o processo de requalificação dos postos de saúde, o Recife conta atualmente com novos consultórios odontológicos na rede pública. "As unidades estão funcionando das 7h às 19h. A gente tinha 3.500 pessoas no território por equipe de saúde no município. Hoje o número caiu para 2.800", informa Luciana, para reforçar que, ao ter um universo menor de pessoas na comunidade para ser atendido, o cuidado dos profissionais se torna mais qualificado.
A Unidade de Saúde da Família (USF) Alto do Pascoal, no bairro Alto Santa Terezinha, Zona Norte da cidade, é uma das que estão com horário de funcionamento ampliado para das 7h às 19h (até janeiro, era das 8h às 18h), sem intervalo para almoço.
"Na unidade, fazemos um trabalho de prevenção desde o pré-natal. Temos cinco equipes de saúde da família, com cinco dentistas: três pela manhã e dois à tarde. Atendemos todas as faixas etárias, incluindo crianças, por agendamento e urgência - esta por demanda espontânea", afirma a cirurgiã-dentista Thuanny Macêdo, da USF Alto do Pascoal.
A estudante Agatha Nicolly Gomes da Silva, 7 anos, é uma das crianças que recebem os cuidados odontológicos na USF. "Os meus dentes ficaram maravilhosos com os cuidados da doutora Thuanny. Aprendi a escovar os dentes, a língua e a gengiva. Meus dentes agora são bola de cristal, de tão lindos", conta a menina, que tem um vínculo forte com a dentista.
"Ela tinha uma condição de saúde bucal delicada, com lesões de cárie, e retenção prolongada de dentes de leite (quando permanecem na boca por mais tempo do que o normal). Mas, desde que concluímos o tratamento, ela vem mantendo os dentes em ordem. Agatha virou o nosso xodó", diz Thuanny.
A cirurgiã-dentista relata que, na USF, vê dois perfis de pacientes: um grupo que consegue seguir os cuidados e permanece livre de cárie e outro mais vulnerável socialmente, com crianças que ainda apresentam muitas lesões de cárie. "Nosso trabalho, além de promover a recuperação da saúde bucal, é conscientizar a comunidade."
Queixas nos consultórios odontológicos
A secretária de Saúde do Recife, Luciana Albuquerque, salienta que a cárie permanece como a queixa principal entre as crianças que frequentam as unidades básicas de sáude. "A criança chega com dor. Em muitos casos, é uma cárie, que exige fazer restauração ou canal. Infelizmente isso ainda é uma realidade na infância. Mas a gente vem trabalhando muito com a prevenção."
Entre as medidas que ajudam a evitar as doenças bucais, está o trabalho de ensinar a criança a ter hábitos de higiene oral desde cedo. "Precisamos explicar de forma lúdica, por exemplo, por que é importante escovar o dente; não é só mostrar à criança como se deve fazer, nem ser uma punição", orienta a odontopediatra Marcela Coutinho.
A especialista reforça o quanto é importante criar o vínculo com o dentista desde cedo. "A ida ao consultório não deve ser uma ameaça, e sim algo divertido. Recomendamos que as famílias levem a criança para a consulta no primeiro ano de vida e continuem o seguimento de seis em seis meses. Com isso, os pequenos vão se acostumando."
Outro ponto destacado por Marcela é o fato de que os responsáveis não esperem a criança sentir dor ou ter um dente torto para levar ao dentista. "Em casa, as famílias geralmente não conseguem identificar uma higienização malfeita, um início de cárie. E na consulta rotineira, vemos tudo isso e podemos atuar de forma precoce, restauradora ou preventiva", sublinha a odontopediatra.
Com essa declaração, Marcela alerta que o dente de leite não está na boca por acaso. "Ele tem uma importância para a fala, a mastigação, a estética e a socialização. É para ser cuidado e valorizado."
Na primeira infância, a presença de lesões nos dentes de leite pode afetar o desenvolvimento de dente permanente. A depender do grau de severidade, a criança pode ter abcessos (acúmulo de pus), febre ou fraqueza. Nesses casos, a orientação é procurar um serviço de urgência.
Higienização é primordial
A cárie dentária é uma condição que impacta na qualidade de vida das crianças. Gera dor nos dentes, desconforto, dificuldade de fala, dificuldade em se alimentar e dormir corretamente. É uma doença que pode e deve ser prevenida.
Nesse sentido, a higienização é essencial. "O ideal é que escova seja com cabeça pequena e cerdas macias. O creme dental deve ter flúor para prevenir a carie e ser usado desde o primeiro dentinho, numa quantidade bem pequena: um grão de arroz seco", ensina Marcela Coutinho.
Ela acrescenta que à medida que vai crescendo e aprende a cuspir, a criança pode aumentar a quantidade de creme dental a ser aplicado na escova. "A partir dos 3 anos, deve-se deixar a criança fazer a limpeza dos dentes sozinha. Mas, na escovação noturna, pedimos que os pais auxiliem e façam a escovação mais bem-feita", orienta a odontopediatra.