Relação médico-paciente: "Na saúde mental, discordar de um autodiagnóstico pode gerar frustração, não alívio", avalia psiquiatra
Nesta entrevista, Amaury Cantilino comenta sobre a nova forma de relacionamento médico-paciente, que pode ser benéfica, mas também gerar contratempos
As redes sociais têm impactado profundamente a forma como lidamos com saúde mental. Nesse cenário, a popularização das plataformas digitais tornou comum o fenômeno do autodiagnóstico, especialmente entre jovens. Nesta entrevista à jornalista Cinthya Leite, colunista de Saúde e Bem-Estar, deste JC, o psiquiatra e psicoterapeuta Amaury Cantilino aborda temas que vão além do autodiagnóstico: o debate permeia pela influência da geração Z e pela tendência da romantização de transtornos mentais, além de jogar luz à importância do equilíbrio entre desestigmatização e a busca por diagnósticos precisos.
JC: Como avalia o papel das redes sociais na disseminação de informações (e desinformações) sobre saúde mental?
AMAURY CANTILINO: O surgimento das mídias sociais transformou profundamente a maneira como as pessoas interagem e se expressam. Por meio de estratégias online eficazes para disseminar conhecimento médico, tem sido possível reduzir o estigma e promover a inclusão social, a fim de fortalecer a empatia em relação às pessoas com transtornos psiquiátricos. Além disso, indivíduos com dificuldades como ansiedade social, depressão e introversão frequentemente recorrem às mídias sociais para compartilhar percepções sobre sua saúde mental. Esse movimento tem fomentado um senso de comunidade e ajudado a preencher lacunas sociais que, até poucas décadas atrás, pareciam intransponíveis. Como resultado, muitas pessoas relatam a sensação de serem "finalmente compreendidas" e de não estarem sozinhas.
JC: Observamos um número crescente de pessoas, especialmente jovens, que veem criadores de conteúdo falarem sobre as próprias condições de saúde mental. Ao seguir esses perfis, há quem se identifique com relatos e até se convença erroneamente de que tem os mesmos diagnósticos. É um grande risco?
AMAURY CANTILINO: Estudos demonstram que os conceitos relacionados à psiquiatria ampliaram seus significados para o público leigo, uma tendência conhecida como "concept creep" (ou "expansão conceitual"). Agora, englobam uma gama mais ampla de fenômenos do que no passado. Esse movimento corre o risco de promover um excesso de autodiagnósticos. O problema é que essas autoavaliações são muitas vezes baseadas em informações imprecisas, incompletas ou excessivamente simplificadas. Embora boa parte desse material seja criado por indivíduos bem intencionados, uma parcela significativa é produzida por pessoas com expertise limitada nos temas que se propõem a falar.
JC: Esse fenômeno do autodiagnóstico tem sido crescente. Em sua experiência clínica, quais são os erros mais comuns que os pacientes cometem ao se autodiagnosticarem?
AMAURY CANTILINO: Há muitos riscos potenciais para pacientes que se autodiagnosticam, e o mais óbvio deles é a possibilidade de o diagnóstico estar incorreto. Depois dele, vem o mais perigoso: o autotratamento, que inclui compra online de medicamentos sem receita e, a depender da fonte de informação, seguir conselhos que levam a terapêuticas ineficazes.
JC: Existem casos em que o autodiagnóstico acabou sendo útil para facilitar o processo terapêutico?
AMAURY CANTILINO: Diante do que falei até agora, parece contrassenso, mas, sim, ajuda em inúmeros casos. Para investigar os efeitos do autodiagnóstico nas mídias sociais, o site Tebra.com entrevistou mil pessoas sobre suas experiências com conteúdo médico em várias plataformas. Uma em cada quatro pessoas referiu que fez autodiagnóstico, com base em informações de mídia social. Entre elas, 43% fizeram posteriormente acompanhamento com um médico sobre a enfermidade que descobriram nas redes sociais. E repare nisso: 82% dos que visitaram um médico após o autodiagnóstico tiveram a suspeita confirmada. Os autodiagnósticos mais frequentes foram de transtornos de ansiedade, depressão, transtorno do déficit de atenção com hiperatividade (TDAH) e autismo. Na minha prática clínica, acredito que os autodiagnósticos não se confirmam em 82% dos casos, mas certamente em mais da metade deles. Assim, a grande vantagem desse movimento se dá principalmente na detecção precoce, sobretudo porque é a geração Z (pessoas que nasceram entre 1996 e 2010) a que mais toma essa iniciativa.
JC: Já vivenciou situações em que discordar do diagnóstico trazido pelo paciente gerou tensão no vínculo terapêutico? Como lida com isso?
AMAURY CANTILINO: Imagine que, na redes sociais, uma pessoa seja instruída quanto ao autoexame das mamas para detecção precoce de câncer. Ela vai ao quarto e percebe um nódulo. Ansiosa, procura um mastologista, faz exames complementares e, ao devolvê-los ao profissional, ele diz que ela não tem câncer. Certamente isso lhe trará alívio e contentamento. Mas na psiquiatria, há peculiaridades que a distinguem de outras especialidades médicas. Imagine que a mesma pessoa assiste a entrevistas com indivíduos que afirmam ter TDAH. Ela checa sintomas na internet, preenche questionário de autoavaliação e se convence de que tem o problema. Vai ao psiquiatra que, a partir da anamnese e do exame psíquico, chega a outra hipótese diagnóstica - ou mesmo afirma que ela não apresenta transtorno psiquiátrico evidente. Em geral, a reação não é de alívio nem de contentamento, mas de frustração, uma vez que muitas das suas insatisfações e limitações já estavam atribuídas àquele suposto transtorno. É como se o psiquiatra negasse ou minimizasse as suas queixas, o que tende a gerar um conflito entre expectativas do paciente e avaliação clínica.
JC: Poderia exemplificar com algum distúrbio psiquiátrico?
AMAURY CANTILINO: Cerca de metade das pessoas que apresentam sintomas clássicos de desatenção e/ou hiperatividade não tem o 'transtorno' do déficit de atenção com hiperatividade. Isso pode ocorrer por estes motivos: ou porque não manifestam os prejuízos funcionais típicos do TDAH ou porque outras condições podem explicar melhor aqueles sintomas. A principal delas hoje em dia, só para ilustrar o nosso desafio diagnóstico, é o uso excessivo de telas. Veja só: quem tem TDAH mostra forte tendência a fazer uso excessivo de telas, mas a exposição descomedida a telas é fator de leva à distração, mesmo à população sem TDAH. O exemplo é o TDAH, mas poderia ser depressão, transtorno do pânico e transtorno obsessivo-compulsivo, entre outros. Se há uma discordância entre a minha impressão e a hipótese do paciente, tento conversar abertamente e procuro fazê-lo entender como foi o meu raciocínio. Um paciente bem-informado tende a compartilhar decisões comigo e assumir mais responsabilidade com o tratamento.
JC: Como o senhor enxerga o impacto das redes sociais na forma como a geração Z lida com questões de saúde mental e na disseminação da glorificação dos transtornos psiquiátricos?
AMAURY CANTILINO: Alguns pesquisadores, como Ahuja e Fichadia, passam a ressaltar um novo fenômeno: a exaltação da doença mental. É como se alguns segmentos da sociedade passassem a enxergar o transtorno psiquiátrico quase como um símbolo de status, sobretudo a geração Z. Embora no passado a mídia tradicional tenha sido frequentemente criticada por vilanizar personagens com doenças mentais, a representação do transtorno psiquiátrico nas mídias sociais da nova era carrega consigo um senso de "mística criativa" , ao pintar a psicopatologia com uma estética glorificada, com olhos fechados às realidades complicadas daqueles que lutam com os desafios genuínos.
JC: Seria uma espécie de glamourização da doença mental, o que pode levar à estigmatização da busca por ajuda?
AMAURY CANTILINO: A romantização da doença mental pode ser especialmente perigosa também porque alguns grupos tendem a encorajar o desenvolvimento de "câmaras de eco" solitárias. "Câmaras de eco" são comunidades online onde as pessoas podem se alimentar da negatividade umas das outras e reforçar ideias e crenças por meio da exposição repetida dentro de um sistema fechado. Isso ajuda a perpetuar os efeitos negativos dos próprios transtornos mentais, como automutilação, transtornos alimentares e, sobretudo, depressão. O fascínio da negatividade, embalado em edições esteticamente agradáveis e experiências compartilhadas, cativa o público jovem, que pode confundir as linhas entre emoções universais e sintomas genuínos de transtornos psiquiátricos.
JC: Como equilibrar a desestigmatização com a necessidade de evitar a romantização e o autodiagnóstico?
AMAURY CANTILINO: Indivíduos impressionáveis podem se autodiagnosticar ou adotar traços de personalidade associados a personagens fictícios, o que leva a potenciais interpretações errôneas e à piora dos desafios existentes. Volto, então, a citar Ahuja e Fichadia: embora a desestigmatização da doença mental continue a ser um objetivo crucial, devemos ter cautela para garantir que a conversa sobre saúde mental não se desvie inadvertidamente para o reino da romantização.
JC: Por outro lado, existem pacientes astutos que acabam por manipular ou direcionar a consulta, seja para confirmar seus próprios diagnósticos ou evitar outros? Como o profissional pode lidar com esse tipo de situação sem comprometer a relação terapêutica?
AMAURY CANTILINO: Existe a dissimulação, que é um termo técnico que usamos para designar a tentativa de ocultar ou minimizar os sintomas de uma doença ou transtorno existentes. Alguns fatores podem levar a pessoa a dissimular. Nesse sentido, no caso do transtorno obsessivo-compulsivo (TOC), pode vir a vergonha associada a obsessões; em pacientes com anorexia nervosa, o receio de serem confrontados pode levá-los a minimizar sintomas como a restrição alimentar; pessoas com transtornos por uso de substâncias podem negar ou minimizar o consumo por medo de julgamento; e há quem tema o estigma associado ao "rótulo" de uma doença grave. Para abordar essa questão, os profissionais de saúde mental utilizam estratégias como o estabelecimento de uma aliança terapêutica sólida, que ajuda a reduzir o medo de julgamento, e a realização de entrevistas motivacionais ou abordagens não confrontativas para explorar os sintomas. Além disso, relatos de familiares são considerados para identificar possíveis discrepâncias.
JC: Qual a mensagem daria aos pacientes que buscam resolver seus próprios sintomas antes de procurar um especialista?
AMAURY CANTILINO: O público em geral desconhece as múltiplas variáveis inseridas nos julgamentos clínicos. Os transtornos psiquiátricos são fenômenos de origem multifatorial, e a classificação diagnóstica é apenas um dos aspectos do nosso trabalho. O bom atendimento envolve escuta cuidadosa, atenção aos fatores psicossociais, entendimento do contexto familiar e percepção dos caracteres de personalidade que vão necessariamente dialogar com o transtorno em si. Além disso, elementos relacionados ao estilo de vida, necessidades e valores pessoais, saúde física e comorbidades clínicas são levados em consideração no planejamento terapêutico que deve ser singular. Vale a pena passar pelo processo antes de se automedicar ou seguir conselhos genéricos.