DIREITOS HUMANOS

Mulher trans queimada viva no Recife recebe reconhecimento de identidade de gênero

Mais de dois anos após ser morta, Roberta Nascimento, que vivia em situação de rua, recebeu o reconhecimento póstumo graças ao trabalho da Defensoria Pública do Estado

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Raphael Guerra

Publicado em 13/10/2023 às 12:27
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Roberta Nascimento da Silva, aos 33 anos, perdeu a vida para a violência urbana. Mulher trans, ela foi queimada viva no Cais de Santa Rita, terminal de ônibus da área central do Recife, enquanto dormia na madrugada do dia 24 de junho de 2021. Na certidão de óbito, não constava o nome social, mas sim o de batismo. Para familiares, essa foi a segunda morte de Roberta.

Na busca por garantir a dignidade, ainda que de forma póstuma, os parentes de Roberta contaram com o apoio da Defensoria Pública do Estado.

"Eles foram encaminhados por representantes do Centro Municipal de Referência LGBT do Município do Recife, que promoveu o acolhimento nesse momento difícil. Roberta, apesar de sempre ter usado o nome social, não havia conseguido em vida finalizar os procedimentos necessários para ser chamado da forma como se identificava. Por isso, a lápide dela veio com o nome de batismo, o que mexeu muito com a família", explicou o defensor público Henrique da Fonte, que é coordenador do Núcleo de Defesa e Promoção dos Direitos Humanos. 

A luta na Justiça durou mais de dois anos, mas a notícia tão aguardada chegou e foi positiva - mesmo com tantos casos contrários em todo o País. A 5ª Vara de Família e Registro Civil do Tribunal de Justiça de Pernambuco (TJPE) atendeu a pedido formulado pela Defensoria Pública do Estado e reconheceu a identidade de gênero posterior ao óbito de Roberta.

A sentença determina que sejam alterados os registros de nascimento e de óbito, a fim de constar o nome e o gênero autoidentificados por Roberta enquanto em vida. 

DECISÕES JUDICIAIS CONTRÁRIAS À MUDANÇA DESAFIARAM A DEFENSORIA PÚBLICA

O pedido da família de Roberta pelo reconhecimento da identidade de gênero foi um desafio para a Defensoria Pública do Estado de Pernambuco.

"Até 2021, quando o pedido chegou às nossas mãos, decisões judiciais pelo País negavam esse direito. Porque se entendia que, se a pessoa morria, o direito ao reconhecimento morria com ela. Mesmo assim, ingressamos com a ação", contou o defensor público.

Em 2022, uma primeira decisão judicial no País contribuiu para aumentar as esperanças de familiares de pessoas trans que tiveram as vidas perdidas e direitos, até mesmo póstumos, negados. Nesse mesmo ano, a Justiça concedeu a Justiça concedeu o direito à mudança de nome de uma pernambucana que morreu em um incêndio em uma clínica em São Paulo, onde estava internada após uma cirurgia. 

A decisão que trouxe dignidade a Roberta foi anunciada essa semana pela Defensoria Pública Estadual. "É muito importante esse reconhecimento, essa garantia póstuma de direitos. Ainda que tardia, essa decisão judicial garante a preservação da memória de Roberta. Garante que ela seja chamada como se identificada, ou seja, garante a dignidade", pontuou o defensor público.

A mudança nos registros de nascimento e óbito deverá ser feita por um cartório localizado no bairro de Tejipió, onde a vítima foi registrada quando nasceu.

MORTE DE ROBERTA GEROU DEBATES E LEIS DE COMBATE AO TRANSFEMINICÍDIO

Um levantamento da Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra) apontou que Pernambuco foi o estado brasileiro com maior número de assassinatos de pessoas trans em 2022. O dossiê indicou que houve ao menos 13 mortes violentas no Estado. 

O assassinato de Roberta, no ano anterior, gerou revolta, protestos e debates sobre a necessidade de ações para combater a violência contra pessoas trans e o respeito à identidade de gênero. Mas, como os números indicaram, nada disso foi suficiente para evitar mais crimes. 

Em 2022, foi sancionada uma lei que instituiu 24 de junho como o Dia Estadual de Combate ao Transfeminídicio.

Já no começo dessa semana, vereadores da Câmara Municipal do Recife aprovaram o projeto de lei do Dia Municipal Roberta Nascimento de Enfrentamento ao Transfeminicídio. Não houve unanimidade, apesar da importância da lei.

Malu Matos/Divulgação
Movimentos representativos das mulheres trans e travestis comemoraram a aprovação da lei na Câmara de Vereadores do Recife - Malu Matos/Divulgação

Na primeira votação, 16 vereadores aprovaram a lei e seis votaram contra. Houve uma abstenção. Na segunda, o número de vereadores favoráveis caiu para 14. Cinco foram contrários. Também houve uma abstenção.

Agora, a lei foi encaminhada ao prefeito do Recife, João Campos (PSB), para que seja sancionada. 

"A Lei Roberta Nascimento é importante para combater qualquer tipo de violência contra as mulheres trans e a comunidade LGBTI+ no Recife. O dia 24 de junho, que ficou marcado pelo luto, agora será um dia de luta. Vamos trabalhar pela conscientização, respeito e contra qualquer preconceito", afirmou a vereadora Liana Cirne (PT), autora do projeto de lei.

O presidente da Ordem dos Advogados do Brasil - seccional Pernambuco (OAB-PE), Fernando Ribeiro Lins, destacou a importância da aprovação da lei municipal.

"É um passo significativo no combate à violência contra a população trans. Demonstra um reconhecimento e uma tomada de posição sobre a necessidade urgente de conscientizar e combater essa que é uma forma brutal de violência. O debate revela a importância da iniciativa não apenas para a comunidade LGBTQIA+, mas para toda a sociedade, mostrando que o diálogo sobre o respeito e a garantia dos direitos humanos de todas as pessoas é uma responsabilidade coletiva", declarou. 

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