DENÚNCIA

Governo de Pernambuco é pressionado a reintegrar soldada expulsa da PM por denunciar assédios

Policial foi punida dois anos após publicar um vídeo pedindo ajuda e denunciando adoecimento mental no trabalho. Conselho Nacional de Direitos Humanos recomenda retorno dela à PM e investigação das denúncias

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Raphael Guerra

Publicado em 06/11/2023 às 14:33 | Atualizado em 06/11/2023 às 18:21
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Em meio à discussão sobre a necessidade de ampliar ações voltadas à saúde mental dos profissionais da segurança pública em todo o País, um caso registrado em Pernambuco chama a atenção. Uma soldada foi expulsa da Polícia Militar dois anos após publicar um vídeo pedindo ajuda e denunciando adoecimento mental por causa de assédios sofridos no ambiente de trabalho.

Mirella Virgínia Luiz da Silva descobriu que não fazia mais parte das fileiras da Polícia Militar de Pernambuco em 1º de setembro deste ano, após ler o nome dela em uma portaria do Diário Oficial do Estado. A decisão, que a excluiu "a bem da disciplina", teve como base um parecer Corregedoria da Secretaria de Defesa Social (SDS), que a considerou "culpada" por supostamente ferir condutas como ética e disciplina. A decisão não levou em conta as denúncias feitas por ela. 

Ignorada e expulsa da Polícia Militar, Mirella passou a contar com o apoio do Gabinete de Assessoria Jurídica às Organizações Populares (Gajop). O caso dela virou tema da 73ª reunião ordinária do Conselho Nacional de Direitos Humanos, em Brasília, na semana passada, quando foi expedido um documento enviado ao governo estadual para que a mulher seja reintegrada à PM.

CARREIRA, ADOECIMENTO E DENÚNCIAS

Mirella ingressou na corporação aos 18 anos, em 2017. Ela conta que estava cursando direito na Universidade Federal da Paraíba (UFPB) quando foi nomeada para o cargo, após aprovação no concurso público. Passou a dar expediente na 3ª Companhia Independente da PM em Goiana, localizada na Mata Norte de Pernambuco. 

"Desde o começo me deparei com coisas absurdas que aconteciam na unidade. Sofria assédio moral de superiores, como ameaças de transferência para outro batalhão, o que impossibilitaria de eu concluir meu curso superior. Chegaram até a ir na minha faculdade para saber se eu estava frequentando aula", afirmou a ex-policial.

Por causa da pressão, segundo ela, os primeiro sintomas do adoecimento mental começaram a surgir e foram se agravando com o tempo.

"Comecei a informar, por vias administrativas, a situação que eu estava sofrendo, mas nada aconteceu. Durante o tratamento psiquiátrico, fui tirada das ruas e passei a trabalhar no setor administrativo, mas da mesma unidade. Me sai bem, fiz cursos, dei palestras. Até recebi designações de funções. Mas os problemas continuaram, até que publiquei o vídeo", disse. 

A investigação da Corregedoria teve início pouco tempo após a publicação do relato, que, segundo Mirella, foi postado no YouTube e enviado apenas a um grupo restrito de policiais militares.

"Lutei muito contra esse problema (adoecimento mental) que adquiri dentro da instituição, que é uma instituição doente, que tem muitas pessoas boas, mas é uma instituição doente porque a gente vê um jogo de poderes muito grande, de pessoas que se superestimam por estarem envergando uma farda em postos superiores e, muitas vezes, diminuindo, perseguindo ou fazendo pouco caso, humilhando, coagindo de certa forma aqueles que estão em um posto inferior", afirmou trecho do vídeo. 

Também disse, no vídeo, que "foi praticamente coagida a trabalhar pela Junta Médica da Polícia, mesmo apresentando documentos médicos da sua impossibilidade, acrescentando ainda que essa Junta não se importa com o que ela sente, querendo apenas que trabalhe, tendo plena certeza de que isso é uma atitude totalmente equivocada".

Mirella contou que logo após o conteúdo ser compartilhado houve a transferência dela para uma unidade policial na praia de Porto de Galinhas, no Litoral Sul de Pernambuco. "Piorei demais e precisei me afastar das atividades por recomendação médica e que foi aprovada pela Junta da Polícia Militar. O afastamento foi necessário porque eu estava muito doente."

EXPULSÃO DA PM

Mirella contou que, durante a investigação da Corregedoria da SDS, foi notificada e chegou a prestar depoimento. "Era como se eu estivesse numa inquisição." 

O parecer, ao qual a coluna Segurança teve acesso, indica que o Processo Administrativo Disciplinar (PAD) não levou em consideração, por exemplo, as denúncias feitas pela soldada - que incluem assédio moral na 3ª Companhia Independente da PM em Goiana, na Mata Norte do Estado. 

A nota técnica assinada pelo corregedor auxiliar militar, tenente-coronel Marcos Sales, pontuou que "a militar é culpada das acusações por ela perpetradas, as quais feriram gravemente valores basilares da carreira policial militar, como a ética, a disciplina castrense, o sentimento do dever, a honra pessoal, o pundonor militar e o decoro da classe"

O texto argumentou ainda que "emerge dos autos que foi instaurado Incidente de Insanidade Mental constando no laudo exarado pela competente Junta Militar de Saúde que a imputada não é, e nem era à época dos fatos, portadora de doença mental, de desenvolvimento mental incompleto ou retardado, apresentando preservada a capacidade de entender o caráter ilícito dos fatos e de se determinar de acordo com esse entendimento, sendo capaz de responder pelos seus atos na forma da lei". 

A decisão pela exclusão da policial foi assinada pela então secretária de Defesa Social, Carla Patrícia Cunha. Na portaria, a ex-gestora destacou que a soldada publicou um vídeo no YouTube com várias referências negativas e críticas à Polícia Militar de Pernambuco. 

Além da exclusão, a policial também responde a processo na Vara da Justiça Militar pelo crime previsto no artigo 166 do Código Penal Militar (crítica indevida). 

CONSELHO NACIONAL PEDE REINTEGRAÇÃO

Na 73ª reunião ordinária do Conselho Nacional de Direitos Humanos, foi aprovada uma recomendação destinada ao governo de Pernambuco para que Mirella volte à Polícia Militar de Pernambuco.

Ao governo estadual, o Conselho solicitou que seja analisada a queixa apresentada pela soldada e que a decisão de excluí-la da corporação seja revista. 

Também foi solicitado à Assembleia Legislativa de Pernambuco que seja criado um grupo de trabalho para apurar as denúncias e avaliar se há casos semelhantes denunciados à Corregedoria da SDS. Por fim, o Conselho pediu que o Ministério Público de Pernambuco (MPPE) investigue o caso. 

Com a recomendação, Mirella criou nova esperança de voltar à corporação. Ela relatou que tem tido avanços no tratamento de saúde mental e que tem condições de retornar ao trabalho. 

Nesta terça-feira (7), a ex-PM vai participar de uma reunião na Secretaria Estadual de Justiça e Direitos Humanos, no Bairro do Recife, para discutir a situação dela. 

Em relação à recomendação, a reportagem entrou em contato com o governo do Estado e com a assessoria da SDS e solicitou um posicionamento, mas não houve resposta. O MPPE também foi procurado e ainda não confirmou se foi notificado. 

POR DIA, 5 MILITARES E AFASTAM DAS ATIVIDADES EM PERNAMBUCO

Thiago Lucas/ Design SJCC
Saúde mental da Polícia Militar - Thiago Lucas/ Design SJCC

O adoecimento mental relatado por Mirella não é um caso isolado em Pernambuco, conforme reportagem já publicada pela coluna.

Estatísticas obtidas por meio da Lei de Acesso à Informação (LAI) revelaram que a Polícia Militar de Pernambuco somou 1.920 afastamentos por saúde mental ao longo de 2022. A média diária é de cinco dispensas ou licenças médicas.

O levantamento também indicou que 4.454 PMs buscaram atendimento psiquiátrico no ano passado.

Levando-se em consideração que o efetivo total da corporação é de pouco mais de 16 mil homens e mulheres, isso significa que pelo menos um em cada quatro PMs sentiu a necessidade de pedir ajuda para a saúde mental.

Além disso, 1.310 militares também se consultaram com psicólogos no ano passado.

O número, apesar de alto, é subnotificado. Isso porque, segundo os próprios policiais, muitos ainda resistem em procurar ajuda.

No Estado, as reclamações de policiais militares em relação ao excesso de trabalho são constantes. Eles dizem que, por causa do baixo efetivo, muitas vezes são obrigados a aderir ao Programa de Jornada Extra de Segurança (PJES) e precisam aderir a plantões em dias de folga. Sob ameaças de punições e até de transferências para outras cidades, eles acabam aceitando trabalhar mais e descansar menos.

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