Voz de uma mulher ecoou internacionalmente e transformou pior presídio do Brasil

Com mais de 30 anos de militância, insistência de Wilma Melo contra violações trouxe mudanças profundas ao Complexo Prisional do Curado, no Recife

Publicado em 10/10/2024 às 12:30 | Atualizado em 10/10/2024 às 12:52

A voz mansa de Wilma Melo ecoou internacionalmente e deu resultado. Com mais de 30 anos na defesa ferrenha dos direitos humanos - sobretudo na cobrança insistente de melhorias no sistema prisional de Pernambuco -, a assistente social e especialista em políticas públicas precisa e merece ser reconhecida pelo papel fundamental na transformação do Complexo Prisional do Curado, localizado na Zona Oeste do Recife.

Considerado um dos piores do País pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ) e um dos mais superlotados da América Latina, o Presídio Aníbal Bruno, como era chamado, chegou a ter três vezes mais presos que a capacidade máxima em 2011. 

Nem o Ministério Público, nem a Justiça, muito menos a gestão estadual se esforçaram em mudar a realidade dos presos, evitando as graves violações dos direitos humanos e a falta de controle. Diga-se de passagem, os próprios detentos escolhiam seus líderes, os "chaveiros", que ditavam as ordens - com a permissão do próprio Estado.

Como pensar em segurança pública sem dar a devida atenção ao sistema prisional? 

Rebeliões, tiros e assassinatos com requintes de crueldade fizeram parte da rotina do presídio na última década. Nem mesmo com a divisão em três unidades (transformando-se em Complexo Prisional do Curado) diminuiu os problemas. Afinal, o espaço era o mesmo e a quantidade de presos não parou de aumentar.

Enquanto o Poder Judiciário permaneceu fazendo vistas grossas, Wilma Melo seguiu cobrando. Cobrou ao governo estadual, ao Ministério Público, à Justiça. Foi aos veículos de comunicação. 

"A população carcerária é, basicamente, formada por pretos, pobres e periféricos. É como se todos já estivem acostumados com isso, como se o Estado não fosse o garantidor da volta com dignidade dessas pessoas para a sociedade", certa vez me disse.

Perdi as contas de quantas ligações fizemos um para o outro na última década. Não faltaram denúncias graves de violações, como a ausência de atendimento médico para presos em estados avançados com as mais variadas doenças, torturas - inclusive com uso de cachorros -, má alimentação, estrutura precária para acomodar minimamente os detentos. 

Wilma não se calou, mesmo sofrendo ameaças de morte e precisando ser inserida no Programa Estadual de Proteção aos Defensores de Direitos Humanos. 

DENÚNCIA À CORTE INTERNACIONAL

João Bita/Acervo Alepe
Wilma Melo, militante dos direitos humanos - João Bita/Acervo Alepe

Em 2011, cansada de não ser ouvida, deu um passo além. Denunciou o Estado brasileiro à Corte Interamericana de Direitos Humanos, da Organização dos Estados Americanos (OEA). Chegou a ouvir deboches: "Não vai dar em nada". Foram muitos. Torcida contra não faltou. 

Naquele ano, a população carcerária se aproximava de 5 mil pessoas. A primeira medida cautelar da Corte foi editada e cobrava a proibição da entrada de novos presos no Complexo. Com sistema falido e superlotado, o Estado não abriu mais vagas, não construiu unidades (como prometia) e não deu atenção à medida. 

Wilma insistiu. Continuou enviando relatórios periódicos à Corte IDH sobre as violações de direitos humanos no Curado. Em 2018, a entidade internacional condenou o Estado Brasileiro pela primeira vez. E, de forma mais dura, cobrou medidas efetivas para garantir a proteção da vida e da integridade pessoal das pessoas privadas de liberdade. 

Anos se passaram, mas, na prática, nada mudou.

Wilma não abriu mão de lutar. Ao contrário: reforçou as denúncias internacionalmente. Foram várias, com detalhes que até impressionavam pela falta de uma tentativa mínima do Estado em resolver problemas tão simples, mas que geravam tantos transtornos e atos de violência. 

Coordenadora do Comitê Estadual de Prevenção e Combate à Tortura, Wilma continuou apresentando provas das violações praticadas, como os buracos que eram improvisados para que o preso rastejar e dormir. Não havia cama para quase ninguém. 

E o que fez o governo estadual, Ministério Público e Justiça? Seguiram inertes, acompanhando nos veículos de comunicação denúncias quase semanais, mas sem novas providências.

VISTORIA DO CNJ E DETERMINAÇÕES À JUSTIÇA ESTADUAL

A realidade, de fato, começou a mudar em agosto de 2022, quando uma comitiva da Corregedoria Nacional de Justiça e do CNJ esteve nos três presídios que compõem o Complexo Prisional do Curado. Membros ficaram estarrecidos com o que viram. Uma verdadeira favelização, mercado paralelo ilegal e presos comandando pavilhões. 

Em uma reunião tensa, questionaram se o governo de Pernambuco não tinha "vergonha". Cobrada pela Corte IDH por causa da condenação, a corregedora nacional de Justiça, ministra Maria Thereza de Assis Moura, determinou que, em até dez meses, a Justiça de Pernambuco retirasse 70% dos presos do Complexo. Além disso, proibiu a entrada de novos detentos

G Dettmar/CNJ/Divulgação
Favelização do Curado chocou membros do CNJ em vistoria em 2022 - G Dettmar/CNJ/Divulgação

As determinações resultaram na virada de chave. Encurralado, o Tribunal de Justiça Estadual criou uma comissão, com membros do governo do estado, Ministério Público, Defensoria Pública, entre outros, e traçou metas para analisar processos de presos e cumprir a meta do CNJ. 

Um ano depois, o número de presos caiu de 6.509 para 2.463, ou seja, 37,8% do anterior. O resultado, como se vê, mostrou que era possível, sim, reduzir a quantidade de reeducandos e diminuir as violações históricas no sistema prisional pernambucano. 

Vistorias de membros do CNJ passaram a ser mais frequentes para monitoramento das determinações. E, em 2023, o Ministério da Justiça e Segurança Pública também passou a atuar no acompanhamento de melhorias no Complexo Prisional do Curado, diante da vergonhosa condenação da Corte Internacional. Wilma, protagonista dessa luta, segue como referência, apontando outros problemas e cobrando soluções. 

Neste mês de outubro, o Curado entra em uma nova fase. Uma quarta unidade será entregue pelo Estado com pouco mais de 900 vagas. A promessa é de uma estrutura adequada, seguindo padrões internacionais, e sem superlotação.

Na última terça-feira (8), representantes do governo federal fizeram uma inspeção no Presídio Policial Penal Leonardo Lago, como será chamado. A Força Penal Nacional também está realizando um treinamento dos policiais penais estaduais. 

Agora, ao que parece, o olhar para os sistema prisional pernambucano mudou. A luta de Wilma por melhorias no Complexo Prisional do Curado durou mais de uma década, mas ela venceu. Os direitos humanos agradecem. 

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