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Little Richard foi rock and roll antes do gênero existir

Sua influência estendeu de Bob Dylan aos Beatles e a Erasmo Carlos

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José Teles

Publicado em 12/05/2020 às 12:43
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O rock morreu duas vezes de desastres aéreos. Em 1959, quando o avião em que Buddy Holly (mais os cantores The Big Bopper e Richie Valens) caiu, matando passageiros e tripulação. E em 1957, quando um avião que ia da Austrália para os Estados Unidos despencou no mar. Little Richard e sua banda viajariam nesse vôo. Mas ele antecipou em dez dias a volta para os EUA. Escapou da morte, mas viu a tragédia como um sinal dos céus para abandonar o rock and roll e abraçar a Igreja dos Dez Mandamentos do Senhor, o que já vinha inclinado a fazer antes da viagem a Sidney. Ele só morreria 63 anos depois, nesse sábado, 9 de maio de 2020, em consequência de um câncer, aos 87 anos.
No auge do sucesso, Little Richard foi tomado por conflitos existenciais e sua música era acusada de satânica por pastores. Ele próprio, de formação fortemente religiosa, considerava pecaminosa a vida que levava desde que saiu de casa, aos 14 anos, porque o pai não aceitava um filho “afeminado”. Coisa que nunca procurou esconder, e ainda reforçava vestindo roupas extravagantes, andando no bas-fond de Macon, sua cidade natal, na Geórgia, e transando com quem aparecesse. Viajou com caravanas de variedades, cantou em espeluncas e passou a trabalhar nas casas noturnas, onde viu todos os grandes do blues dos anos 40 – B.B King, Sister Rosetta Tharpe – tornando-se um celebridade paroquial.
ESQUERITA
Gravou o primeiro disco em 1951, um sucesso menor no Sul dos Estados Unidos. Menor, mas suficiente para o pai reconhecer o talento de Little Richard e, assim, fumarem o cachimbo da paz. O pai seria assassinado pouco tempo depois. Depois que as casas noturnas fechavam, ele ia azarar na noite. “Eu costumava ficar lá no restaurante do terminal de ônibus da Greyhound, em Macon, que ficava aberto à noite toda, vendo as pessoas que entravam, e tentava pegar alguém, você sabe, para transar”, conta Little Richard ao seu biógrafo.
Numa dessas noites esbarrou com Esquerita. Não havia nada no show business americano feito Esquerita (nome de batismo, Esquew Reeder Jr). Cantava e tocava piano em pé, martelava as teclas, pulava, além das roupas berrantes, usava uma cabeleira à Madame Pompadour. Little Richard não conta o que aconteceu entre os dois naquela noite. Mas ele levou Esquerita ao lugar onde morava, e este o ensinou a tocar piano e cantar à sua maneira. Esquerita nunca fez sucesso, usufruiu um pouco da fama de ser citado como influência de Little Richard. Mas foi considerado um freak, uma aberração, até o final da vida. Morreu pobre, em consequência do HIV, em 1986.
O estilo de Esquerita era muito transgressor, até mesmo para Little Richard. Dele adotou apenas o corte de cabelo. Em 1955, quando foi contratado pela Specialty, gravadora que lançava os chamados “race records”, discos para o consumidor negro do Sul, mas que vendiam bem para ambas as raças na Califórnia, Little Richard escolheu quatro canções convencionais. O produtor Bumps Blackwell que foi a Macon para gravá-lo não se entusiasmou. O cantor no palco não era o mesmo no estúdio. Depois de mais uma sessão de gravação, Blackwell e Little Richard foram a um bar com música ao vivo.
De repente, já bem conhecido no local, Richard vai ao pequeno palco, fica de pé diante do piano, e mostra o que aprendeu com Esquerita, cantando uma canção agitada e de letra pornográfica, aberta com um berro agudo e primal: “Awopbopaloobop Alopbamboom/ Tutti Frutti, o bootie (bootie é “traseiro” em linguagem família). Era aquilo o que Bumps Blackwell queria. Ele mandou a música para uma letrista chamada Dorothy le Bostrie torná-la mais palatável. Depois de três takes, em 15 minutos, nascia o rock ‘n’ roll mais selvagem da história do gênero, naquele 1955 em que uma das música mais tocadas foi Love is A Many Splendored Thing, do filme Amor Sublime Amor. Tutti Frutti nem era ainda chamada de rock ‘n’ roll. Pouco tempo depois, Little Richard recebia um convite para ir para Los Angeles. A música estava estourada na Califórnia. Logo no resto do país, e no mundo.
Little Richard e Chuck Berry foram as maiores influências da geração da música popular nascida nos anos 40, que fez o som dos anos 60. Elvis Presley, embora idolatrado, bem menos. Era tão perfeito, apolíneo, que parecia impossível chegar até ele. Bob Dylan, quando garoto, sonhava em tocar na banda de Little Richard, que era ídolo para John, Paul, George, Ringo, Mick Jagger e Keith Richards, Robert Plant, Jimmy Page, Erasmo Carlos, Roberto Carlos e Tim Maia, e garotos semelhantes mundo afora.
THE BEATLES
Em 1962, quando viajou para apresentações na Inglaterra, com o tecladista ainda adolescente Billy Preston, Little Richard pretendia cantar gospel e spirituals, louvar o Senhor. Porém os garotos que lotavam os espaços onde ele cantava queriam escutar Tutti Frutti, Long Tall Sally, Slippin and Slidin, Rip it Up, Ready Teddy, Lucille. Ele acabou cedendo e voltou ao rock ‘n’ roll. Na sua apresentação em Liverpool, apresentou dois shows com a participação do grupo mais famoso da cidade, The Beatles (que estava no limiar da fama), com quem viajaria para uma série de shows em Hamburgo, na Alemanha.
Little Richard gabava-se de ter ensinado tudo a Paul McCartney. Foi mais ou menos o que Esquerita ensinou a ele. A se soltar quando cantasse. Ninguém conseguiu imitar Little Richard tão bem quanto McCartney, tanto em regravações, quanto em musicas autorais, feito I’m Down ou Oh Darling. Anos depois, Little Richard relembrou na biografia o encontro com os quatro músicos de Liverpool, sem esconder a antipatia por John Lennon: “Fiquei particularmente amigo de Paul McCartney, mas eu e o John não nos entendíamos. John tinha uma personalidade terrível. Era diferente de Paul e George. Eles eram uns amores. George e Paul tinham personalidades mais humildes, sabe, submissos. John e Ringo eram estranhos, todos os dois. O John peidava, pulava pro lado, e espalhava o cheiro pra todo lado, e eu não gostava daquilo não”.
Little Richard poderia ter parado na sua primeira conversão em 1957. Quando voltou, o mundo da música começava a mudar, e os Beatles foram o vetor principal desta mudança. Mas o que ele fez em apenas dois anos foi tão importante quanto os próprios Beatles na década de 60. O berro com que abre Tutti Frutti é o equivalente na música popular à abertura da 5ª Sinfonia de Beethoven para a música erudita: “Awopbopaloobop Alopbamboom”

 

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