No EP Eu Me Lembro, Clarice Falcão revisita canções do início de sua carreira a partir da sonoridade eletrônica que marcou seu disco mais recente, Tem Conserto (2019). Longe de ser uma tentativa de reescrever sua história, o trabalho é uma celebração de suas experiências sob a perspectiva de uma mulher aos 30 anos, no Brasil de 2020 (e tudo que isso implica); de uma artista em ebulição, disposta a experimentar novas possibilidades sonoras e poéticas.
O interesse por música eletrônica já acompanha a artista há anos. Fã de Björk (na adolescência, chegou a ter um fã clube dedicado à artista islandesa), intuía que esse termo guarda-chuva abarcava possibilidades diversas, do techno, house, trip hop, entre outros. Mas, quando resolveu adentrar na música, enveredou por outro caminho, acústico, mais ligado ao folk, pela possibilidade de aprender a tocar violão sozinha e sentir que a sonoridade minimalista seria mais adequada para o seu tipo de composição quase em tom de crônica.
“Sempre gostei muito de compor letras que contem uma história, tenha uma piada. Naquele momento, achei que os arranjos tinham que ser mais minimalista e por isso o Monomania (2013) era muito voz, violão e ukelele”, explica. “Nesse sentido, Monomania é bem conceitual, é sobre falar de uma pessoa só e a sonoridade também é muito obsessiva. Em Problema Meu (2016), resolvi fazer o oposto, cada música é um universo diferente.”
O retorno à música eletrônica se deu mais recentemente, quando passou a frequentar mais às festas voltadas para o estilo e passou a compreender suas nuances. Em parceria com o produtor Lucas de Paiva, concebeu Tem Conserto em um processo mais pessoal, dentro de casa, refletido tanto na sonoridade etérea do trabalho, quanto nas letras, nas quais ela aborda temas como sua vivência com doenças mentais, morte e desejo.
O disco capturou a melancolia que parece circundar uma geração confrontada com um mundo em transformação vertiginosa, acossada pelo fantasma do fascismo, das facetas mais cruéis do capitalismo e empurrada rumo à desilusão. Mas, ao invés da desesperança, há algo de esperançoso no disco, uma resiliência que só é conquistada por quem se propõe à hercúlea missão de olhar para suas sombras e entende que sobreviver - e ser feliz - é possível. “'To quebrada, mas tem conserto/ Não parece, mas tem conserto (...) Tá difícil, mas tem conserto”, canta na faixa-título, que pode ser lida como um mantra de auto-ajuda individual e coletivo.
“Como alguém de família com histórico de doença mental, acho importante conversar sobre o assunto. Meu avô se matou, minha avó morreu de overdose de remédio. Ele, deprimido; ela, borderline. E ninguém falava sobre isso. Eram pessoas que se achavam esquisitas. Minha mãe chegou a ir ao hospício tomar eletrochoque porque achavam que tinha alguma coisa errada que só ia ser curada levando choque”, conta. “Então, para mim é importante ter essa abertura para falar desse tipo de tema, para que as pessoas se cuidem mesmo, conversem sobre essas fragilidades. Luto desde muito nova com isso e só agora me senti pronta para abrir esse canal.”
A abertura dessas novas frentes temáticas, assim como a mudança sonora, fez com que Clarice acessasse outros lugares e públicos, entendendo, também, que alienaria uma parte de seus ouvintes que não se identificavam com o seu atual momento artístico. Ao conceber a turnê de Tem Conserto, ela sabia que não desejava quebrar a linha narrativa do show e, assim, mergulhou na sua discografia para adaptar canções antigas à vibe eletrônica. Foi, segundo ela, um processo de tentativa e erro até que chegasse às músicas que, agora, deram origem ao EP Eu Me Lembro, que também é produzido por Lucas de Paiva.
“Minha essência está nas letras, no que eu digo. Não tô apagando meu passado, até porque tenho muito orgulho, fico muito feliz com os discos que fiz. É como se eu tivesse olhando e me perguntando como essas músicas que fiz há um tempão seriam hoje”, reflete. “No Tem Conserto, fui mais chiquezinha, mandei masterizar fora, usei meu dinheiro. Com esse EP, não gastei nada, a gente fez tudo, Gabriel Guerra mixou e masterizou. Graças a deus, porque eu não estava esperando o corona, sem dinheiro entrando”
De Problema Meu, ela pinçou Irônico e Eu Escolhi Você, enquanto, do álbum de estreia, são retrabalhadas O Que Eu Bebi e a faixa que dá nome ao EP, cantada em dueto com Letrux (na original, tinha participação de Silva), que ganha tom homoafetivo. A coletânea traz ainda a inédita Pra Ter o Que Fazer, lançada anteriormente em voz e violão apenas no Youtube, em 2012, que com a produção elegante de Moraes evoca sensações sinestésicas.
A força das composições e as interpretações de Clarice refutam qualquer preconceito de que a música eletrônica é essencialmente fria ou cerebral. Há algo de profundamente delicado e cheio de sentimento na música de Falcão.
Com a eclosão da pandemia provocada pelo novo coronavírus, a intensa agenda de Clarice Falcão está em suspenso. Ela, no entanto, pretende encarar a incerteza e a angústia da situação como um momento de aprendizado e espera conseguir produzir novos materiais durante o período (já começou, inclusive, a esboçar o roteiro de uma nova série). Entre as ações que ela pretende executar está o lançamento de uma música composta há algum tempo sobre o caos, que, segundo a artista, ganha novos contornos diante da situação que vivemos.
Paralelamente, ela continuará trabalhando o Tem Conserto. Um vídeo para a canção Dia D, faixa que exala luxúria após um período de abstinência sexual, deve ser lançado assim que acabar a quarentena. “Finalmente chegou hoje /Eu já tava pra morrer/ Já tô toda preparada/ Pro negócio acontecer/ Esperei semana toda/ Hoje vai ter que rolar”, canta ela na música.
“Quando a galera estiver saindo para ferver, vou lançar. Vai ser muito foda”, idealiza, refletindo ainda sobre a importância da resiliência neste momento. “Estou me adaptando, tentando não levar isso com peso (...) Quem tem o privilégio de ficar em casa, tem que tentar aprender, pensar sobre o que está acontecendo, tentar crescer".
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