Despedida

Cambinda Brasileira perde Dona Biu, liderança feminina e madrinha espiritual do maracatu de Nazaré da Mata

Quem conheceu Dona Biu sabe o amor que ela dedicou ao maracatu. Foram 50 anos cuidando da espiritualidade e das fantasias da Cambinda do Cumbe

Adriana Guarda
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Adriana Guarda
Publicado em 20/04/2020 às 17:31 | Atualizado em 21/04/2020 às 0:44
HEUDES REGIS/CORTESIA
Dona Biu com uma das calungas do Cambinda Brasileira, na janela da sua casa, em Nazaré da Mata - FOTO: HEUDES REGIS/CORTESIA

O maracatu de baque solto e a cultura popular estão de luto. Morreu na tarde desta segunda-feira (20), Severina Maria da Silva, 72 anos, conhecida como Dona Biu do Maracatu. Durante 50 anos consecutivos ela devotou sua vida ao Cambinda Brasileira de Nazaré da Mata, cuidando da preparação espiritual dos folgazões e da brincadeira. Mulher guerreira, Dona Biu era uma liderança, uma conselheira, uma mãe dentro do maracatu. Sua despedida entristece o universo do baque solto, mas também deixa um legado de respeito à tradição.

A guardiã do Cambinda Brasileira faleceu na sua casa, na Vila JC, em Nazaré da Mata, onde deixou seu altar cheio de sincretismo religioso e sua velha máquina de costura preta. Dona Biu já vinha sofrendo com complicações no fígado e não conseguiu acompanhar o maracatu em todas as apresentações no Carnaval deste ano. Ela morreu de insuficiência hepática. O enterro será amanhã às 15h, no Cemitério São Sebastião, em Nazaré da Mata.   

>> Em 2018, o JC publicou um especial sobre o Cambinda Brasileira, em comemoração aos 100 anos do maracatu

Mestre Barachinha, do maracatu Estrela Dourada de Buenos Aires, lamentou a morte de Dona Biu. "Ele teve uma importância gigantesca não só para o Cambinda, mas para o baque solto em geral. Foi uma pessoa que soube lutar e preservar a tradição do baque solto até seu último dia de vida e ficará lembrada na mente de todos os maracatuzeiros. A cultura perdeu muito, mas Deus entendeu que era o momento de acabar com o sofrimento dela (se referindo à doença)", diz Barachinha. Ele conta que depois que o filho de Dona Biu faleceu ela passou a chamar ele de filho e que ele a considerava como uma mãe também. O mestre aproveita para fazer uns versos para ela:

Dona Biu pela Cambinda se entregou de corpo e alma

Trabalhou mostrando calma, disso a gente lembra ainda

Deixou a Cambinda linda, firme e forte, organizada

A madrinha respeitada de Cambinda Brasileira

Se foi mas a vida inteira por nós ficará lembrada

Dona Biu entendeu que tinha um dom desde criança. Em entrevista para a pesquisa "Não deixem o Brinquedo Morrer", sobre o centenário do Cambinda Brasileira, ela contou que se manifestou pela primeira vez aos 7 anos de idade. Bem jovem foi curiada no de Mãe Menininha do Gantois, o mais famoso e respeitado centro de candomblé do Brasil. Trouxe de lá a cultura da tolerância e do diálogo entre as crenças e manteve a efervescência de seu caldeirão religioso.

Aos 22 anos assumiu o Cambinda Brasileiro a convite do dono do maracatu na época João Padre, substituindo a antiga madrinha Dona Mariinha, que estava cansada e pediu para se "aposentar" da tarefa. Dona Biu era muito cuidadosa e exigente com a tradição religiosa da brincadeira e não costumava contar seus segredos sobre preparo espiritual. 

Ex-presidente do Cambinda Brasileira, Elex Miguel, diz que prefere ficar com a imagem forte dela enquanto estava viva. "Prefiro ficar com a lembrança dela me aconselhando. Dona Biu era uma grande mulher e tinha uma importância muito grande para a cultura. Estou muito triste", lamenta. 

Mestre do Cambinda várias vezes e voz do maracatu no seu centenário meste Anderson Miguel também comentou a partida de Dona Biu. "Dona Biu pra mim foi uma mãe, uma avó. Quando comecei a cantar ela me deu total apoio. A primeira bengala pequena, do meu tamanho, foi ela quem me deu em 2008. Meu pai (Aderito) cantava como contramestre de Antonio Paulo Sobrinho nos 90 anos do Cambinda. Teve uma hora que eu fiquei assim distante e ela disse: 'meu filho, seu lugar é ali perto do seu pai. Você é o futuro mestre do Cambinda. E ela sempre me defendeu e sempre orou por mim, mesmo eu estando dentro ou fora do Cambinda. Eu sou muito grato a Dona Biu, emociona-se Anderson. E também faz um verso pra ela: 

Primeiro foi Zé de Carro

E agora Dona Biu

Primeiro foi Zé de Carro 

E agora Dona Biu

E a dor da despedida

O meu coração sentiu

E a dor da despedida

O meu coração sentiu

Em agosto de 2015, o presidente e irmão de Dona Biu, Zé de Carro faleceu. Ela ficou muio triste na época, mas continuou tocando o maracatu junto com João Estévão e José Estévão, filhos de João Padre. 

O coordenador de Patrimônio Imaterial da Fundação do Patrimônio Histórico e Artístico de Pernambuco (Fundarpe), Marcelo Renan, destacou a liderança feminina de Dona Biu. "Dona Biu representa o espírito mais vivo das tradições culturais populares: a força de uma liderança feminina que, longe dos holofotes dos palcos e da mídia, sustenta as principais tradições de um maracatu. Além da condução espiritual, Dona Biu era responsável por aconselhar folgazões dentro e fora do maracatu, o que garantiu a muitos deles chegar a ocupar importantes papeis nas suas vidas profissionais e artísticas. É importante destacar seu papel e pensar as questões de gênero, não para reforçar o estereótipo da mulher que cuida e dá retaguarda aos homens do maracatu, mas para falar de uma liderança forte e legítima, que, por amor às tradições, sustentou firmemente toda uma comunidade, Cambinda Brasileira do Engenho Cumbe, Patrimônio Vivo de Pernambuco", observa.

Dona Biu se manteve firme diante do maracatu a tempo de acompanhar a festa do centenário, em 2018, e a conquista de Patrimônio Vivo de Pernambuco, no ano passado. Em Nazaré da Mata, a despedida será como ela gostava: com o terno batendo, o mestre cantando e os folgazões dançando.

HEUDES REGIS/CORTESIA
Dona Biu, bem no centro, jogando chapéu em comemoração ao título de Patrimônio Vivo de Pernambuco do Cambinda Brasileira, no ano passado - FOTO:HEUDES REGIS/CORTESIA

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