A imagem um outdoor anunciando o lançamento do disco Glitter, de Mariah Carey, com as torres gêmeas do World Trade Center pegando fogo ao fundo é um prato cheio para a semiótica. Lançado no fatídico 11 de setembro de 2001, o álbum marcou o período mais conturbado para a artista, que culminou com uma crise emocional, a rescisão de um contrato avaliado em 100 milhões de dólares e comentários cruéis afirmando que sua carreira estava acabada. Quase dezenove anos anos depois, o trabalho ganhou um status de obra cult e, após várias campanhas de seus fãs, Mariah disponibilizou o disco nesta sexta-feira (22) nas plataformas digitais.
Mariah Carey lançou Glitter no dia 11 de Setembro de 2001 junto com o maior atentado da história. Hoje ela disponibilizou nas plataformas, justo na época de uma pandemia global com mais de 300 mil mortes pic.twitter.com/U8JREWYvd4
— Carlos #TeamGigi (@cardicarey) May 22, 2020
A mítica em torno de Glitter demorou para ganhar corpo. Ainda que seus fãs mais ardorosos defendessem o valor do álbum desde seu lançamento, o trabalho carregava uma aura de maldito, alimentada pela própria Mariah, que apesar de defender a qualidade do material em entrevistas, se afastou dele por anos. A artista voltou a abraçar o material em 2018, após a campanha #JusticeForGlitter, iniciada nas redes sociais, levou o álbum ao topo das paradas do iTunes 17 anos após seu lançamento.
“Eu acho que esse movimento de ‘justiça para Glitter’ foi direcionado para mim porque eu nunca fiz performances daquelas músicas já que quase acabaram com a minha vida (risos). Mas a verdade é que é pela nostalgia porque, de fato, é um ótimo álbum e hoje eu posso dizer isso. Então eu tenho que agradecer a eles (os fãs), isso é por eles, e não tenho mais que me sentir mal (sobre a má recepção), porque foi tudo resultado das circunstâncias de quando o álbum foi lançado”, afirmou a cantora e compositora ao Good Morning America à época.
As circunstâncias citada por Mariah realmente foram a confluência de uma série de fatores internos e externos. Na vida pessoal, Mariah ainda se recuperava do divórcio com o empresário Tommy Mottola, à época presidente da Sony/Columbia. Durante o relacionamento amoroso e profissional, Mottola se opôs às tentativas da artista de explorar outras sonoridades, como o hip hop e vertentes mais dançantes do r&b, instruindo Carey a se ater à composição e interpretação de canções românticas.
A artista começou a explorar mais outros gêneros a partir do Butterfly (1997) e consolidou esse processo com Rainbow (1999), em parte gravado durante o processo de divórcio. Com esses álbuns, Mariah também começou a mudar sua imagem, apresentando-se mais sensual e jovial. Com Rainbow, ela finalizou o contrato com a Sony e assinou um acordo avaliado em 100 milhões de dólares com a Virgin para gravar cinco discos.
Glitter, trilha sonora do filme homônimo que marcou a estreia de Mariah no cinema, foi o primeiro álbum lançado sob este contrato. Com total liberdade criativa, a artista optou por celebrar a música dos anos 1980, especialmente o crepúsculo da disco music, o r&b e o hip hop, dialogando, assim, com o período no qual o longa-metragem era ambientado.
Mariah, no entanto, começou a dar sinais de cansaço e perturbação emocional durante a campanha promocional do trabalho, o que fez com que fosse internada para tratar de uma “exaustão física e mental”. Por esse motivo, tanto o álbum, que deveria sair em agosto, quanto o filme, foram adiados para setembro.
Na semana de lançamento, Glitter atingiu o sétimo lugar na parada americana, até então a pior posição para um trabalho da artista, que foi a mulher que mais vendeu álbuns na década de 1990. O filme teve uma recepção ainda pior, com críticas duras e uma arrecadação pífia: apenas 5,3 milhões de dólares contra um orçamento de 22 milhões para ser produzido.
Diante da má recepção, a Virgin rescindiu o contrato da artista, pagando a ela uma multa de 20 milhões. A percepção do público sobre Mariah, dando-a como “acabada” foi cruel e só viria a mudar em 2005, quando ela fez um retorno triunfal com o disco The Emancipation of Mimi, sucesso comercial, com mais de 10 milhões de cópias vendidas, e crítica.
A BOATE DE MARIAH
Para emular a sonoridade dos anos 1980, ela contou com colaboradores como a dupla Jimmy Jam & Terry Lewis, que assinou a produção de cinco das 12 faixas do álbum. Jam & Lewis foram nomes seminais na música pop dos anos 1980, assinando trabalhos clássicos de Janet Jackson, Human League e S.O.S Band. É deles também a produção original de Didn’t Mean To Turn You On (1984), de Cherelle, que é regravada com excelência por Mariah em Glitter.
Outro cover irretocável e que mostra a sensibilidade de Mariah com os gênero que ela celebra no álbum - e sua relação afetiva, de fato, com essas músicas, sem investir em uma nostalgia sem personalidade - é Last Night a DJ Saved My Live (1983), originalmente lançada pelo grupo Indeep. Mariah celebra a cultura do hip hop com as participações dos rappers Busta Rhymes e Fabulous e do DJ Clue.
Loverboy, que tem um sample irresistível de Candy, do grupo Cameo, atingiu o segundo lugar na parada americana, após a gravadora reduzir o preço do single, em uma ação que pareceu desesperada para os críticos da época. Uma pena, pois a faixa é divertida e contagiante, como todo o álbum.
Majoritariamente dançante, Glitter tem uma atmosfera festiva e sedutora, que transporta o ouvinte a festas reais e utópicas. Em faixas como Want You, parceria com Eric Benét, Don’t Stop (Funkin’ 4 Jamaica), com o rapper Mystikal, e All My Life, ela captura a essência do êxtase de noites em a música, álcool e hormônios fornecem o escapismo necessário diante das dificuldades da vida.
Apesar de feito para as pistas, o disco não deixa de lado as baladas românticas que consagraram Carey como uma das maiores vocalistas de todos os tempos, a exemplo de Lead The Way, Never Too Far e Reflections, que não deixam a desejar em comparação a alguns de seus clássicos.
Que Glitter tenha sido relançado agora, meio a uma pandemia, parece emblemático. Além de evocar, em sua sonoridade e composições, momentos de êxtase, comunhão e alegria, pelos significados que o disco adquiriu ao longo das últimas duas décadas, pode também ser entendido como um símbolo de que fracasso e sucesso são conceitos relativos e, muitas vezes, injustos. Ressignificar as experiências - e a arte - é não só possível, como necessário.
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