Crítica

'Chromatica', de Lady Gaga, é a trilha sonora da distopia chamada 2020

Sexto álbum da diva pop é um retorno à pista de dança e um de seus melhores trabalhos

Márcio Bastos
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Márcio Bastos
Publicado em 28/05/2020 às 16:21 | Atualizado em 29/05/2020 às 0:40
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Lady Gaga cria um disco que propõe uma ressignificação da dor a partir da pista de dança - FOTO: Reprodução

A música pop, queiram os puristas ou não, tem uma ímpar habilidade de capturar o espírito de seu tempo e a articular várias de suas questões, possibilitando caminhos para entender as angústias e necessidades de um período. Chromatica, sexto disco de Lady Gaga, que chega aos streamings nesta sexta-feira (29), é um disco que não nasceu como uma resposta ao coronavírus (já estava finalizado meses antes da pandemia estourar), mas é permeado pelos símbolos de um mundo em crise e da tentativa de repensar essas estruturas a partir dos escombros, tendo a pista de dança como marco zero.

“Apenas dance/ Vai ficar tudo bem”, cantava uma ainda pouco conhecida Lady Gaga - nome artístico de Stefani Germanotta, em Just Dance. O ano era 2009 e a canção chegava ao topo das paradas alguns meses após o disco de estreia da nova-iorquina, The Fame, chegar às lojas. Barack Obama começava seu primeiro mandato e havia uma certa esperança no ar. Com sua estética que misturava no mesmo caldeirão referências como Madonna, David Bowie, Grace Jones e o mundo queer, dos club kids às drag queens, Gaga logo se tornaria uma figura-chave da cultura pop contemporânea, influenciando uma geração de artistas e fãs.

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O frenesi em torno da figura de Lady Gaga era justificado: talentosa, divertida e ousada, ela injetou uma estranheza que estava ausente do mainstream há algum tempo. A visão de pop art de Andy Warhol encontrava nela mais uma seguidora ávida, capaz de se apropriar dos símbolos da cultura capitalista, se valer deles e, ao mesmo tempo, subvertê-los, entendendo a superficialidade que há no consumismo desenfreado e na cultura de celebridades.

Sua visão ficava cada vez mais ambiciosa em trabalhos como The Fame Monster (2009) e Born This Way (2011), disco que incorporava referências musicais ousadas e se tornou um hino para uma juventude LGBT que encontrava na artista uma aliada e, talvez acima de tudo, um símbolo de aceitação da diferença, de que está tudo bem em ser diferente.

Sob os holofotes, Gaga conseguiu bater recordes, vender milhões de álbuns e provocar discussões sobre temas ligados a autenticidade, sexualidade, gênero e fama. E não saiu incólume dessa superexposição: sua visão artística, antes tão certeira, parecia mais turva e caótica, como provou a campanha de divulgação do álbum Artpop (2013). Entre as declarações de artista de que se tratava do “disco do milênio” e o material em si havia um abismo.

Não se tratava de um trabalho ruim. Há ótimos momentos, mas é uma obra irregular e que não atinge a ambição de sua criadora. As táticas de marketing de Gaga que beiravam a exaustão e atitudes como a inclusão do cantor R. Kelly, já com várias acusações de estupro e abusos contra mulheres, na faixa Do What U Want, também pesaram para que o trabalho fosse recebido de forma morna.

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Recentemente, com novas evidências da culpabilidade de R. Kelly, Gaga, que já foi vítima de violência sexual, se desculpou pela parceria, afirmou que ela foi feita em um momento de fragilidade emocional, e retirou o dueto das plataformas digitais, substituindo-o por uma parceria com Christina Aguilera. Em 2014, lançou o álbum Cheek To Cheek, com Tony Bennet, interpretando clássicos da música americana.

O distanciamento da música eletrônica se aprofundou em Joanne (2016), disco com influências country que leva o nome da tia da americana, que faleceu de lúpus. Gaga encarava o álbum como uma espécie de constelação familiar, uma forma de dar fechamento a feridas de sua família. A aclamação com Nasce Uma Estrela, seu primeiro papel de destaque no cinema, que lhe rendeu indicação ao Oscar de Melhor Atriz e a estatueta de Canção Original por Shallow, parecia consolidar essa nova Gaga, “normal” e sem riscos.

PLANETA CHROMATICA

E então veio o Chromatica. A cantora e compositora já vinha atiçando seus fãs desde meados de 2019 e prometia um álbum dançante. Com o primeiro single, Stupid Love, não só parecia cumprir sua promessa, como também criava um mundo distópico, pós-apocalíptico, dividido em facções. A proposta pacificadora só podia vir de um lugar: a união através da música.

Inicialmente programado para ser lançado em 10 de abril, a campanha de divulgação do álbum foi interrompida com a eclosão da pandemia do novo coronavírus. Gaga se engajou no combate à pandemia, promoveu um festival online e ajudou a arrecadar milhões de dólares para auxiliar os profissionais de saúde. Segundo ela, primeiro havia a necessidade de encarar a realidade para, depois, oferecer o escapismo.

E é isto que Chromatica oferece: um caminho para imaginar outro cenário melhor, mais esperançoso. A utopia de Lady Gaga não nasce da negação da dor, mas da sublimação dela. “Esta é minha pista de dança pela qual eu lutei”, canta ela em Free Woman, em uma explosão de sintetizadores que transportam o ouvinte para as luzes de estrobo e os corpos suados das boates. A felicidade é uma batalha - e dor e felicidade podem ser lados de uma mesma moeda.

A música eletrônica, a house music, dão o tom do disco. Não há aqui espaço para as baladas de piano que sempre estiveram presentes nos outros trabalhos de Gaga. O disco tem uma certa urgência que reflete os tempos desesperadores e politicamente conturbados em que foi concebido. É, também, uma de suas criações mais coesas: o álbum é dividido em três partes, cada uma marcada por um interlude instrumental que conferem uma atmosfera cinematográfica, quase de ficção científica.

Babylon, um acid house hipnótico, convoca para a festa, o encontro, uma das maiores utopias nesse período de isolamento social. “Ainda estou viva?”, questiona em Replay. “Eu não sei o que fazer/ Não sei o que dizer/ As cicatrizes na minha mente estão no replay”, completa, em um espiral emocional que remete aos cativeiros emocionais que se tornaram, também, nossas casas.

Que ela cante sobre temas tão delicados, como sua saúde mental, a exemplo de 911, que fala sobre sua relação com antipsicóticos, em cima de batidas frenéticas, é uma escolha ousada e que reforça a força da música eletrônica como veículo de transbordamento emocional.

1000 Doves é outro momento de puro êxtase pop, que parece saído de uma máquina do tempo, diretamente do final dos anos 1990. Outra surpresa de Chromatica é Sine From Above, parceria impecável com Elton John. Há algo quase onírico e com toques gospel que a interpretação da dupla evoca. Tudo isso embalado em um “bate-cabelo” experimental da melhor qualidade.

Alice, sobre a busca de um País das Maravilhas como resposta ao desespero e ao desalento do aqui e agora; Rain on Me, com Ariana Grande, e Sour Candy, com o grupo sul-coreano Blackpink, reposicionam Gaga como uma força das pistas, providenciando refrões marcantes. Em Enigma, ela se questiona: “O que estou vendo é real ou só um sinal? É tudo virtual?”, um resumo certeiro da contemporaneidade.

No livro Last Night a DJ Saved My Life, os autores Bill Brewster e Frank Broughton descrevem o gênero musical que definiria a década de 1970 como sinônimo de “liberdade, união, amor”; “sujo, espiritual, excitante e poderoso”. Perigoso, não branco, queer e faminto. Uma emancipação. Em 2020, a música eletrônica continua essa tradição de rebeldia e questionamento, mesmo que ela venha embalada em produtos prontos para o consumo em massa, como o Chromatica. Gaga, por sua vez, retorna à linha de frente do pop, concretizando sua visão ambiciosa, camp e deliciosamente bizarra.

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