História

De Grande Otelo a Bulbul, o cinema brasileiro mantém relação complexa com o negro

Em sua história, o cinema nacional lança olhares de desumanização, secundarismo e alteridade para a população negra, mas movimentações lutam para se contrapôr ao cenário

Rostand Tiago
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Rostand Tiago
Publicado em 08/06/2020 às 12:28 | Atualizado em 08/06/2020 às 12:33
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O ator e cineasta Zózimo Bulbul em 'Alma no Olho', seu filme de estreia - FOTO: Reprodução

Após se dedicar a descrever o desempenho de atores em A Filha do Advogado, filme pernambucano do ciclo de 1920, uma matéria da imprensa local vai citando nominalmente cada um dos intérpretes e como se portaram bem na atuação. Ao final, sobra o seguinte elogia para uma dessas performances. "Há ainda a salientar o intérprete do jardineiro Geroncio. É um preto que nunca fez teatro mas surpreende pela espontaneidade das suas aptidões artísticas", diz o comentário. O "preto" era Ferreira de Castro, mas pouco se sabe sobre sua carreira posterior ou sobre sua biografia.

A história do negro no cinema brasileiro começa pela desumanização, vai para o secundarismo e depois passa a ser olhado com uma chave mais socialmente engajada, mas ainda embasada pela alteridade e pelo olhar de um outro, branco. Movimentações mais recentes começam a bater de frente com esse cenário. Na cinematografia nacional, em especial na primeira metade do século passado, a figura do negro era mais um tipo do que um indivíduo. Nos primórdios, não eram tão raros atores brancos pintados de preto, já que os espaços de produção só poderiam ser ocupados por pessoas de “boa família”. Pouco depois, vai surgir figuras como a do "negrinho", crianças pretas também não identificadas que estão ali sob a ótica do cômico pejorativo.

Humberto Mauro, considerado um dos maiores cineastas fundadores do cinema nacional, faz isso em Tesouro Perdido (1927), de sua primeira fase de produção ainda em Cataguases, Minas Gerais. Um garoto negro é comparado a um sapo, em uma cena com intenções cômicas, momento louvado pela mídia local. Em sua publicação no livro 'Nova História do Cinema Brasileiro', organizado por Fernão Pessoa Ramos e Sheila Schvarzman, esta última relata que "com a inserção dessa cena, entendida como cômica, a naturalização dos preconceitos em relação aos negros, que pode, inclusive nesse caso, ter inspiração no cinema americano, mas é reiterada à brasileira".

Apenas em 1943, um dos nossos vai se tornar uma exceção, pelo menos em termos de relevância e talento reconhecido, começando a trilhar um caminho para ser um dos maiores da nossa história. O estúdio carioca Atlântida Filmes lança seu primeiro de grande repercussão, Moleque Tião, dirigido por José Carlos Burle e protagonizado por um certo Sebastião Prata que, do alto de seus 1,50 metros, decide ser chamado de Grande Otelo. Trata-se da terceira aparição do lendário ator, músico e compositor, vivendo agora um "negrinho" do interior que foge para o Rio de Janeiro para tentar a sorte como artista em uma companhia de teatro de revista. Trama que também conversa com a biografia de Otelo, fugido ainda jovem com uma companhia de teatro no interior de Minas Gerais.

Grande Otelo passou pelo Companhia Negra de Revista, cantou em cassino - entrando pela porta de trás -, soltando a voz também nas rádios. Em Tristezas não pagam dívidas (1944), inicia a icônica parceria nas telas com Oscarito, em um esquema de humor baseado nos contrastes entre seus fenótipos, branco e negro, à la O Gordo e o Magro.

De acordo com o pesquisador José Luiz Vieira, em seu texto também publicado em Nova História do Cinema Brasileiro, Otelo se via fadado ao secundarismo em relação ao companheiro, por conta da cor de sua pele. Chegou a abandonar as gravações de A Dupla do Barulho, alegando problemas entre os dois. O estúdio Atlântida chegava a publicizar a rivalidade da parceria que durou até 1954. Otelo segue sua carreira pelas chanchadas do estúdio e sua carreira longeva o permite a estar presente em outros momentos do cinema em que a figura do negro passa a ganhar mais complexidade, ainda que vista sob o olhar do outro branco, como é o caso de Assalto ao Trem Pagador (1955), de Roberto Farias, obras que permitiram dar vazão ao talento dramático de Otelo.

 

Petrobras Cultural/Divulgação
Grande Otelo foi um dos primeiros artistas negros a ganhar destaque nacional por seu trabalho no cinema - Petrobras Cultural/Divulgação

Ainda nos anos 1940, Cajado Filho, um dos mais ativos roteiristas e cenografistas da época assume a direção de Estou Aí (1948), se tornando o primeiro diretor negro do cinema brasileiro. Os filmes que escreveu e dirigiu eram protagonizados por brancos. Alguns pesquisadores tentam buscar aspectos de sua condição enquanto um homem negro em seu trabalho como roteirista e diretor, apesar de suas obras nessa última função estarem desaparecidas. Um ano depois, Luiz Carlos Burle dirige Também Somos Irmãos, considerado o primeiro filme a lidar com o racismo como tema, com Grande Otelo no elenco.

Cinema Novo, novo "outro"

A presença do negro nas telas acaba se intensificando com o passar dos anos, mas sua presença atrás das câmeras vem em passos muito mais vagarosos. Nomes como Nelson Pereira dos Santos, com Rio, 40 Graus e Linduarte Noronha com Aruanda, começam a virar a chave. Logo em seguida vem a movimentação do Cinema Novo, em suas ficções e documentários em estilo direto, que buscam trazer outros olhares para a questão.

Olhares que ainda partem de uma branquitude, algo que o pesquisador Fernão Pessoa Ramos vai colocar como um olhar a um "outro periférico", impulsionado por uma espécie de culpa burguesa. Vão surgir obras como Barravento (Glauber Rocha), Cinco Vezes Favela (Marcos Farias, Miguel Borges, Leon Hirszman, Joaquim Pedro de Andrade, Cacá Diegues) e Ganga Zumba (Cacá Diegues), que trazem um virada de chave na representação da racialização. O movimento de revisão crítica do cinema até então produzido no Brasil, em especial as chanchadas, leva nomes importantes do período, como David Neves e Orlando Senna, a falar de um verdadeiro "cinema negro", durante o Cinema Novo.

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Cena de Ganga Zumba, de Cacá Diegues - Reprodução
 

É uma virada de chave importante na representação, claro, mas falar em um cinema negro que parte de um grupo de homens brancos de classe média é uma ideia no mínimo equivocada. Entretanto, nas telas desses filmes, vão surgir figuras negras que assumirão a direção das histórias contadas já nos anos 1970. Alguns de destaque são Waldyr Onofre, Antonio Pitanga e Zózimo Bulbul.

Este último vai dirigir obras como Alma no Olho, em 1974, inspirado em elementos que vão do Partido dos Panteras Negras a John Coltrane, contando a história da diáspora negra pelo mundo. A cultura negra em si vai pautar ainda muito sua obra, como nos títulos Dia de Alforria? e Abolição. Zózimo, falecido em 2013, possui um vasto legado na história de nossa cinematografia. Em 2007, fundou o Centro Afro Carioca de Cinema, voltado para encontros, debates, oficinas e mostras sobre o cinema negro. Em 2019, o Festival Internacional de Cinema de Roterdã trouxe a mostra Soul in The Eye, voltada para o cinema pan-africano e batizada assim em homenagem a Bulbul e seu filme de estreia.

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