GÊNIO

Ennio Morricone dava nova potência aos filmes com suas trilhas

O lendário compositor Ennio Morricone, falecido nesta segunda-feira (06), trouxe trilhas que levaram filmes para lugares únicos na história do cinema

Rostand Tiago
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Rostand Tiago
Publicado em 06/07/2020 às 16:22 | Atualizado em 06/07/2020 às 16:40
REPRODUÇÃO
'ERA UMA VEZ NO OESTE' É UM DOS CLÁSSICOS QUE CONTAM COM A TRILHA DE MORRICONE - FOTO: REPRODUÇÃO

Antes de seus olhos claros ou de seu rosto marcado e carrancudo encarar um grupo de pistoleiros, já sabíamos muito sobre o que seria Charles Bronson em Era Uma Vez no Oeste. Poucos segundos antes, uma gaita emana notas compostas por Ennio Morricone e evoca toda a densidade e melancolia que revestem a fúria do homem em uma impressão de falsa calma. O personagem de Bronson recebe o nome do instrumento e recebe a música do gênio italiano como uma parte vital de sua existência dramática, um presente que poucos personagens na história do cinema receberam. Morricone faleceu nesta segunda-feira, aos 91 anos, em Roma.

É evidente que a obra de Morricone se encontra em uma gama diversa de encenações no cinema, passando por nomes conterrâneos como Bernardo Bertolucci, Pier Paolo Pasolini, Lucio Fulci e Dario Argento, mas se estendendo para realizadores de todo o mundo, conseguindo englobar uma diversidade que passa por Brian de Palma, John Carpenter, Don Siegel, Terrence Malick, Pedro Almodóvar e Quentin Tarantino. Sua carreira, obviamente, não se resume a parceria com Sergio Leone, em especial nos westerns spaghetti, mas é de lá que vem o primeiro fascínio do mundo com Morricone. E é muito fácil de, se não entender, pelo menos sentir o porquê.

Começando pelo palpável no cotidiano, temos uma única música que se converteu em um ícone sonoro para todo um gênero. Sem desmerecer outros nomes como Victor Young ou Max Steiner, mas até hoje, quando se vai fazer alguma referência, citação ou paródia ao velho oeste, a primeira escolha parece ser sempre a faixa-título da trilha sonora de O Bom, o Mau e o Feio, de 1966. Ao dar a notícia de sua morte, o Washington Post o referenciou como "compositor do ah-ee-ah-ee-ah", referenciando a música. A percussão logo acompanhada pelos sons que se assimilam ao uivo de coiotes (ah-ee-ah-ee-ah) se tornou um gatilho sônico para o imaginário coletivo de um gênero que já era mítico desde os primeiros anos do cinema.

E são só alguns segundos de toda uma obra complexa que levou a produção de trilhas sonoras para o cinema a lugares nunca ouvidos antes. Muito se fala de como nos filmes de Leone, a trilha de Morricone aparece como um personagem. É isso, mas não só isso. Há trilhas que elaboram climas, outras que manejam o tempo rítmico e aquelas que fazem parte do universo narrativo como uma peça importante. Morricone fazia todas essas e muito mais, não só isoladamente, mas também ao mesmo tempo, em uma harmonia não só musical, mas narrativa. São músicas que parecem se enganchar na materialidade, seja nos olhos de Clint Eastwood ou no caminhar de Henry Fonda e as preenchem com o espírito de algo mítico, de contornos místicos, mas também secos.

Também é desse momento que se sabe existe tensão e existe tensão musicada por Ennio Morricone. Os confrontos, em especial os derradeiros, da obra de Leone são sempre pontuados ao se falar do manejo do tempo pela montagem, mas a dilatação temporal só encontra seu grau de plenitude único com a orquestração musical. O compositor sabia como utilizar os instrumentos para suspender o mundo físico, cravando ganchos e o retirando por alguns instantes do fluxo cronológico da realidade. Carpenter sabia desse poder quando convidou o compositor para criar o ambiente sonoro do terror glacial O Enigma de Outro Mundo (1982), conciliando seu trabalho com criações mais eletrônicas próprias do diretor. O mesmo fez Quentin Tarantino em Os Oito Odiados que, ao beber diretamente da obra de Carpenter, traz Morricone para compôr sua trilha.

Mas se o tempo pode ser estendido pela tensão, na obra de Morricone ele também o pode ser pela ternura. Dentro do terreno das obras de grande popularidade, Giuseppe Tornatore tinha noção desse poder de Morricone ao chamá-lo para Cinema Paradiso ou Terrence Malick em Cinzas no Paraíso. Falamos de uma obra que quando queria ser dura e pesada o fazia com intensidade, sabia contaminar a encenação com ares épicos até na melancolia, mas tinha a mesma intensidade para dotar o mundo de leveza e docilidade. Algo que poucos gênios são capazes.

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