GATRONOMIA

Confinamento e redes sociais modificaram a relação das pessoas com a cozinha

Desde o início da quarentena, buscas no Google por receitas caseiras mais do que dobraram. Muita gente se reconectou com o ato de cozinhar e, como todo fenômeno social do século 21, este não passou incólume das plataformas digitais de comunicação

Valentine Herold
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Valentine Herold
Publicado em 13/07/2020 às 14:22
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MENU Restaurantes deverão oferecer descontos de 10% em um dos pratos - FOTO: GETTY IMAGES

Que cultive seu próprio fermento natural quem não postou um story, uma foto no feed ou nem sequer se deparou com a deliciosa invasão gastronômica nas redes sociais nos últimos quatro meses. Com o confinamento provocado pela pandemia do novo Coronavírus, muitas pessoas tiveram que intensificar as idas à cozinha ou até mesmo preparar uma refeição completa pela primeira vez. E como todo fenômeno social do século 21, este não passou incólume das plataformas digitais de comunicação.

Cada bolo assado, yakisoba preparado ou hambúrguer caseiro saboreado foi devidamente compartilhado com amigos e familiares. Mais do que nunca, apegar-se a essas ferramentas de postagens de fotos e vídeos virou quase que uma estratégia de sobrevivência em meio a um momento histórico tão conturbado, assim como se dedicar a pesquisar e arriscar novas receitas.

Talvez, inclusive, cultivar fermento e os outros processos da panificação nem sejam mais um mistério para você. Afinal, a busca pelo termo "como fazer pão" no Google mais do que dobrou entre abril e junho - em comparação com os três primeiros meses do ano -, assim como a procura por receitas de coxinha, brigadeiro, lasanha e esfiha. Eletrodomésticos e utensílios usados na cozinha, como batedeira e máquina de fazer pão, também viraram campeões de pesquisa em sites de compra online. Muito mais do que uma impressão empírica baseada nas bolhas das redes sociais, os dados revelam que sim, os brasileiros passaram a se reconectar com o ato de cozinhar na quarentena.

Os motivos iniciais são fáceis de enumerar: home office, restaurantes fechados, preços altos das entregas de delivery, contenção de gastos e o cuidado com o que vem de fora devido aos riscos de contágio. Mas não são apenas eles que continuam movendo tanta gente que está gostando de se desafiar nos fogões. Parece haver mesmo um movimento de desmistificação e retomada de prazer no cozinhar.

A socióloga e pesquisadora gastronômica Clarissa Galvão acredita que não tenha existido, na história recente, uma janela de oportunidade como essa para reconectar as pessoas à alimentação e ressalta o caráter de marcação identitária do lugar que se ocupa socialmente a partir das escolhas alimentícias.

DANIEL CATÃO/DIVULGAÇÃO
OPINIÃO Clarissa Galvão acredita ser esta uma oportunidade inédita na história recente para reconectar as pessoas à alimentação - DANIEL CATÃO/DIVULGAÇÃO

"Uma das consequências mais danosas do processo de industrialização da alimentação foi o afastamento das pessoas do fazer culinário. Várias gerações cresceram desconectadas e alienadas desse campo. No documentário Muito Além do Peso, cujo tema é obesidade infantil e hábitos alimentares, vemos crianças dizerem que amam batata frita, ao passo que são incapazes de reconhecer uma batata em meio a outros tubérculos e raízes. Os alimentos estão dispostos em prateleiras de supermercados, chegam ao consumidor processados e embalados, em caixas, bandejas, sacos plásticos, porcionados, pré-prontos, para atender a uma demanda por rapidez que o modo de produção e vida moderna exigem", analisa.

"O que a pandemia traz de novo a este cenário, por causa do confinamento, é a combinação da dificuldade, e do risco, de terceirizar a produção da refeição no espaço público dos restaurantes e no espaço privado, por conta da suspensão, mesmo que temporária (e como sabemos nem sempre massiva), do trabalho doméstico nas casas das classes média e alta brasileiras."

Glúten, please

Esse movimento de reaproximação com o cozinhar se deu, para muitos, além das principais refeições do dia. Uma boa parcela dos quarenteners que teve o privilégio de estar trabalhando de casa testou fazer seu próprio pão. A volta triunfante do atemporal pãozinho caseiro? De certa forma, sim. Não que ele estivesse obsoleto antes da pandemia, fazer pão em casa sempre foi uma atividade comum, mas tanto a sintomática falta de tempo na rotina corrida do dia a dia urbano quanto o advento de dietas low carb ou glúten free resultaram nos últimos anos em um certo abandono das terapêuticas e braçais etapas de fermentação, sova e cozimento do pão.

Para o consultor gastronômico, pesquisador da panificação e autor dos livros Pão Nosso (2013) e Direto ao Pão (2019), ambos publicados pela editora Panelinha/Sesc, Luiz Américo Camargo, o interesse pelo pão caseiro não é recente, mas ganhou corpo durante a quarentena. "Já vinha forte há alguns anos. O maior sucesso do meu antigo blog, 11 anos atrás, foi quando comecei a ensinar a fazer fermento. Nesta quarentena, entretanto, a demanda explodiu, em todas as redes, em pedidos de entrevistas, em contatos por vários meios. O pão virou assunto, virou artigo de primeira necessidade, virou hobby, até fermento biológico e farinha andaram faltando, em várias praças", avalia.

Para Clarissa Galvão, que além de pesquisadora é também autora do livro Dize-me o Que Comes e Te Direi Quem És (2015, editora Appris), "as mudanças nas dinâmicas sociais e no cotidiano, trazidas pela pandemia, impactaram os interesses das pessoas e isso transformou o tipo de informação e conteúdo que circula nas redes sociais, dando mais espaço ao tema da alimentação."

Luiz sentiu diretamente o impacto dessa procura tanto no aumento do número seguidores no Instagram quanto nas vendas de seus livros e dos feedbacks positivos do seu podcast Pão Nosso, lançado em março deste ano. Segundo ele, são muitos os fatores que atraem as pessoas para o universo da panificação. Dentre eles, a reavaliação do que é necessário diante deste cenário e o que pode ser dispensado em termos de futilidade. "Valorizando o artesanal, o manual, o sazonal, o feito com os próprios recursos e esforços. Por isso, o pão caseiro vira uma saída para comer bem, nutrir com qualidade, mas também de hobby, de passatempo. Fazer pão nos tira do noticiário, traz relaxamento, obriga também a certo foco", pontua.

Ver tantas fotos, vídeos e orgulhosas legendas repletas de #pãocaseiro #euquefiz #fermentaçãonatural pode parecer um movimento pontual e movido por uma certa performatização estética no mundo digital, mas o especialista acredita que a popularização vai muito além disto.

"Não se trata de um modismo, mas de algo que, como diz a Rita Lobo, minha amiga e editora dos meus livros, deveria ser encarado como tão essencial quanto saber ler e escrever. Quem aprendeu a cozinhar e fazer pão na pandemia vai manter esse hábito. Porque é mais barato, é seguro, é nutricionalmente mais rico, é agregador, é terapêutico. Talvez, com o retorno das atividades normais, externas, a frequência de pratos preparados em casa se reduza. Mas não desaparecerá."

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PÃO NOSSO Luiz Américo viu aumentar o interesse do público pela panificação - DIVULGAÇÃO
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PÃO DO LIVRO DE LUIZ AMÉRICO - DIVULGAÇÃO

O psicólogo mineiro Carlos Alberto Gomes de Melo, que mora em Pernambuco há 40 anos, precisou aderir ao confinamento ainda no início de março, por ser integrar o grupo de risco devido a problemas de saúde. O tempo maior dentro de casa provocou nele uma vontade de voltar a cozinhar diariamente e foi inevitável recorrer às receitas afetivas de sua memória familiar.

"O mineiro carrega esse amor pela comida no DNA. Minha relação com a cozinha, sem dúvida alguma, mudou na quarentena, me fez retomar a curiosidade e preparar receitas que eram da minha mãe", conta. "Tive que parar os atendimentos no consultório e cuidar da minha saúde, percebi que precisava de uma válvula de escape. A minha família que adorou e comecei a gravar uns vídeos de receitas com a ajuda de meu filho, postamos alguns no YouTube."

A retomada de Carlos Alberto na cozinha se deu inicialmente preparando pratos e lanches típicos de sua terra natal, como arroz mineiro, pão de queijo, biscoito polvilho e outros. Mas, aos poucos, decidiu também se aventurar nos sabores pernambucanos, a pedido da esposa e do filho. A ponte entre os dois estados se dá agora diariamente à mesa. "Poder passar esse tempo na cozinha é uma terapia e compartilhar as receitas é minha maneira de incentivar outras pessoas a sair da letargia. A alimentação pode ser prazerosa e benéfica para todos nós, ainda mais em um momento como esse que estamos passando."

Entre tantos desafios e angústias que marcam este momento complicado da pandemia conseguir aproveitar o tempo dentro de casa cozinhando e se divertir com tentativas acertadas ou não de novas receitas é um privilégio. Anthony Bourdain, chef norte-americano e apresentador de televisão falecido em 2018, já tinha dado o recado: “Seu corpo não é um templo, é um parque de diversão. Aproveite o passeio.”

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