Toda releitura implica um processo prévio de assimilação de símbolos já estabelecidos, tomando como ponto de partida uma obra finalizada - e muitas vezes canônica. A criação artística, quando se propõe à releitura, move-se portanto no sentido da ressignificação. O poeta curitibano Francisco Mallmann conhece bem esse processo de. Com uma ousadia necessária, ele se propôs a realizar poeticamente uma "releitura dramática" da América Latina em seu novo livro intitulado América (66 pgs., R$ 45), recém-lançado pela editora Urutau.
Este é o terceiro livro do autor e também o mais experimental na forma e no conteúdo. Pensado e executado para incentivar a leitura em voz alta, a obra é uma extensão do projeto artístico de Francisco, que envolve ainda dramaturgia e performance. "Este texto foi criado em voz alta/ para ser lido em voz alta/ para ser impresso em voz alta/ para ser publicado em voz alta/ para ser partilhado em voz alta/ para ser silenciado em voz alta/ para ser esquecido em voz alta", orienta no início do livro. Assim como em Haverá Festa Com o Que Restar (2018), Língua Pele Áspera (2019), a temática queer se faz bastante presente neste trabalho mais recente.
Mas se antes os dilemas, as vontades e as feridas seguiam quase sempre um rumo de uma certa crônica urbana e amorosa dos tempos atuais, agora parece ter chegado a hora de escancarar questões seculares inerentes à formação política desta doída e desigual América Latina. Ainda há lugar para o afeto, claro, mas o olhar é mais cru e direto, próprio de "una marica en guerra", como diz um de seus versos.
Para Francisco, este amadurecimento se deu para além do fazer poético em si, abarcando também um ideal de coletividade. "Entendi que, ao escrever e publicar poesia, existe, efetivamente, a possibilidade de formar um ajuntamento estético-político. Porque, evidentemente, a minha escrita está muito próxima de reivindicações do que se convencionou chamar 'grupos minoritários', essa articulação em comunidades surge como um gesto vital, às vezes em caráter de urgência - especialmente em cenários em que os corpos e as vidas de pessoas LGBT, por exemplo, estão sempre em risco ou em constante negociação de existência. A criação em poesia amadureceu assim: criando palavras para que nos mantivéssemos vivas", afirma.
Colocar em versos questionamentos que buscam subverter a lógica secular da história contada desta américa, tecendo um constante diálogo com o presente, é um processo contínuo de pesquisa na vida de Francisco Mallmann. Filho de pais gaúchos de regiões fronteiriças com o Uruguai e a Argentina, ele pontua que sempre vivenciou essa linha tênue entre os costumes e o que se entende por hábitos brasileiros e desses demais países.
"A memória e a noção de fronteira - física, metáfora, conceito - sempre me foram muito sedutoras. Gloria Anzaldúa escreveu que 'para sobreviver às fronteiras/ você deve viver sin fronteras/ ser uma encruzilhada'. Isso influenciou muito as minhas noções de gênero – identidades (im)possíveis, gêneros textuais, arte e cultura. É um espaço em que as nossas historicidades e socibialidades se revelam sem nenhuma possibilidade de romantização. Há um estado bruto da violência, do poder, da colonialidade. Há beleza, sim. E há dor. Muita dor. Esse lugar, a fronteira, que ao mesmo tempo te prende e te oferta o trânsito, o transe. Há aí algo de maravilhoso e assustador."
Esse encanto com assombro também pode ser usado para descrever o contexto do lançamento do livro. América já estava pronto quando a pandemia do Coronavírus começou a avançar no Brasil e não foi uma decisão fácil manter o cronograma na editora. Diante de tantas perdas e medos, Francisco sentia que não era o momento para celebrar o livro. "Uma sensação de que todos os significados e sentidos estavam suspensos. Mas, depois, foi uma sensação completamente contrária que me acometeu: talvez, exatamente agora, seja a hora de radicalizar as discursividades, atestar a vida", analisa.
E de fato o público vem recebendo muito bem a obra. Muitos de seus leitores o acompanham diariamente através das redes sociais. No Instagram, Francisco reúne 28 mil seguidores e compartilha com eles suas experimentações poéticas que ultrapassam as páginas dos livros.
Jogos de palavras, muito presentes em Haverá Festa Com o Que Restar, são transpostos em bandeiras, muros e colagens. "Acho que a poesia na internet tem produzido uma inversão muito poderosa do que alguns de nós havíamos sido instruídos a crer que era poesia. Mas também, às vezes, me assusto com este poder. Não crio para internet. Compartilho, vez ou outra, o que crio ali. E isso é mesmo diferente."
América surge então como clímax dos três livros marcado por uma identidade política, que denuncia, afirma mas também acalenta; que incentiva o coletivo ao pensar a partir de uma perspectiva contemporânea. Não por coincidência a cor vermelha está presente nas capas dos três livros e em muitas intervenções artísticas urbanas e digitais de Francisco. Sua poesia é roja e potente.
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